Emicida, com desenvoltura e criatividade, mostra sua habilidade de explorar diferentes gêneros musicais na produção de seu disco

Matéria originalmente publicada na revista Hey Rap em 2016 e atualizada em 2020
Emicida, Leandro Roque de Oliveira, 35, é hoje um dos principais nomes da nova geração do rap nacional. O rapper da Zona Norte adquiriu sua fama por sua habilidade de improvisar rimas em batalhas de MCs. Seu nome artístico vem daí: Emicida é o resultado da junção das palavras “MC” e “homicida” — ele assassina MCs com suas rimas. O rapper já lançou duas mixtapes, dois EPs e cinco álbuns, todos pelo selo Laboratório Fantasma — gravadora criada por ele e seu irmão Fióti.
“Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…”, lançado em 2015, é o segundo álbum de sua carreira e contém 14 faixas que somam um total de 52 minutos. Emicida, com desenvoltura e criatividade, mostra sua habilidade de explorar diferentes gêneros musicais na produção de seu disco.
Um público diferente, que não está acostumado a ouvir rap, também é contemplado neste disco. Há muita variedade na produção das faixas, mas o que une todas elas são as referências à cultura africana na ideia transmitida e na sonoridade fortemente influenciada pela música da região.
Emicida sempre sonhara em conhecer o continente africano, então ele visitou Angola e Cabo Verde e foi lá que concebeu a ideia deste projeto. A proposta inicial do MC era fazer um álbum em que o tema principal seria a África, mas após voltar ao Brasil, ele notou as semelhanças entre os países africanos e seu país de origem e decidiu fazer um tributo ao legado cultural da África e as relações que unem a cultura brasileira com a africana.
Sua principal meta era o retrato da ancestralidade africana e a desconstrução de esteriótipos sobre o continente africano e sua realidade. As faixas de destaque do álbum são: “Mãe”, “Baiana”, “Passarinhos”, “Chapa”, “Boa” “Esperança” e “Mandume”.
“Mãe”, a primeira faixa do CD, é uma ode à sua mãe e sua luta. O instrumental dá uma sensação de tranquilidade ao ouvinte. Leandro ressalta a dignidade de Dona Jacira, que trabalhou por muitos anos como empregada doméstica para sustentar sua família composta de dois filhos homens e duas mulheres. A importância da figura de sua mãe faz com que o rapper refira-se a Deus como uma mulher negra igual à sua mãe. Emicida fala sobre a luta de sua genitora, os sacrifícios que ela fez por ele e seus irmãos e a enorme responsabilidade que ela carregou nos ombros por ser mulher e mãe solteira. O MC diz, no refrão, que ouve a voz de sua mãe em todo lugar. Para nós somente no finalzinho da música é que a voz de Dona Jacira é ouvida. Ela descreve o nascimento de seu filho e sua relação com ele, já prevendo o que seu terceiro filho se tornaria no futuro. Esta faixa serve como uma introdução para o álbum e à personalidade do Emicida.
“Baiana” contém a participação de Caetano Veloso no refrão e nos backing vocals durante os versos de Emicida. A música é uma mistura de rap, MPB e música pop. É a composição que melhor ilustra a forte influência da cultura africana na cultura brasileira através da letra permeada por referências à cultura baiana (que possui forte influência da cultura do continente africano) como o Mestre Didi, a Banda Olodum, o Pelourinho e o 2 de Fevereiro (Dia de Iemanjá).
“Passarinhos” tem a participação de Vanessa da Mata e foi o som de maior sucesso comercial no álbum. O clipe da música hoje conta com mais de 50 milhões de visualizações no Youtube. Emicida, nesta faixa, tenta se colocar do ponto de vista de um passarinho, para por meio de metáforas fazer uma relação entre o sofrimento dos seus antepassados africanos e a sua vida. O som de passarinhos, de fundo, transmite um tom de tranquilidade e liberdade ao ouvinte, um efeito de contraste muito interessante com o teor da letra.
“Chapa” contém a participação do grupo Batucadeiras do Terrero dos Órgãos, de Cabo Verde. O instrumental desta música passa suavidade e leveza. A faixa começa com a voz de uma mulher falando sobre seus dois filhos que estão desaparecidos. O Chapa, à que Emicida se refere, personifica todas as pessoas desaparecidas, que fugiram de casa sem dar satisfação para sua família. Leandro direciona sua mensagem a essa pessoa, contando como ela é querida e valorizada por seus familiares e amigos, que sentem sua falta. É uma das músicas mais comoventes do álbum pelo sentimento que ela passa ao ouvinte, transmitindo a saudade dos parentes e conhecidos dessas pessoas, a esperança e o alento com a possibilidade de algum dia poderem se reencontrar.

“Boa Esperança” vem logo depois de Chapa e também envolve muita emoção. É uma mudança brusca de som e destoa positivamente em relação a outras faixas. Não é uma música tranquila que passa uma vibe relaxante como o restante do álbum. É uma faixa na pegada dos raps nacionais dos anos 90, com um beat boom bap muito pesado e J. Ghetto cantando no refrão. O som forte do bumbo dá o tom da track, que lembra as músicas tribais africanas.
Emicida te leva a uma viagem pela história — a depressão no convés que os negros africanos sequestrados do seu continente sentiram quando estavam no navio negreiro. Ele fala sobre diversos capítulos da história da humanidade e problematiza a opressão em cada época.
O rapper também disseca vários aspectos do racismo presente na sociedade brasileira. Leandro fala a respeito da falta de representatividade negra nas faculdades brasileiras, mesmo que a maioria da população brasileira seja negra, ela continua sendo minoria nas instituições de ensino superior. O MC também critica o racismo presente na corporação policial e os chamados “autos de resistência” — utilizados constantemente em boletins policias para alegar uma suposta legítima defesa dos policiais em caso de assassinatos de jovens negros.
Leandro também critica o sensacionalismo de parte da mídia – personificada na pessoa de Datena, que vende um discurso complacente com a violência policial.
As referências internacionais também são muito ricas e ilustrativas em seu conteúdo. O rapper fala da Ku Klux Klan, — organização racista de extrema-direita dos Estados Unidos que perseguia e linchava os negros — e questiona o fato de muitos auto-intitulados supremacistas brancos atualmente se apropriarem da cultura negra, usando marcas que são famosas por serem usadas por pessoas negras como a Obey. Há menção ao nazismo e dos campos de concentração: a opressão do homem branco pelo homem branco. Também comenta sobre países africanos como Angola e Congo, regiões que passaram grande parte de sua existência marcada por guerras civis que deixaram muitas vítimas e fatalidades, além de um legado devastador para as gerações seguintes.
A emoção presente nesta música vem, principalmente, da raiva reprimida por Emicida durante os anos. Ele parece não falar não só por si mesmo, mas por todos os negros que foram perseguidos e oprimidos durante toda a história. O rapper coloca para fora toda sua revolta contra o racismo sistêmico que marca gerações inteiras de brasileiros e africanos até hoje. É a melhor música do álbum, a mais rica liricamente em conteúdo histórico e a mais contundente na mensagem que pretende passar.
“Mandume” reúne 6 MCs diferentes e é a música mais longa do disco com 8 minutos e 15 segundos de duração. É o resultado da reunião de diversos rappers com estilos e histórias diferentes. O beat é hipnótico e é um dos mais originais do projeto. Drik Barbosa abre a música, com um verso muito contundente, considerado um dos melhores do ano, que compreende desde uma crítica à mídia tradicional até a defesa do feminismo negro. Amiri vem na seguida com versos falando sobre Sundiata e Zumbi e também critica os apoiadores da redução da maioridade penal. Ele é seguido de Rico Dalasam, que fala sobre seus amigos que perderam a vida. O verso do Muzzike, rapper do Lauzane, faz uma crítica à cena atual do rap e à apropriação do gênero pela classe média. A parte de Raphão Alaafin, logo depois, é permeada de referências a religiões africanas presentes no Brasil. Emicida fecha a música com um verso de resposta a todos que o acusam de ser “vendido”, dissecando sua fama e seu sucesso com várias referências à cultura pop.
Esse álbum é como uma compilação que compreende várias faces de Emicida. Há músicas para a rádio, love songs e raps pesados para os fãs do rap nacional tradicional. É um disco que pode ser ouvido por qualquer pessoa que é admiradora de boa música em geral e a música negra em específico. O CD te leva a uma viagem ao Brasil e a África através do som e da letra, além de servir quase como uma aula didática de história. O rapper da Zona Norte consegue passar conhecimento através da combinação certa de rimas e melodias sem ser maçante com sua mensagem como outros tipos de MCs.
“Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…” do Emicida é um clássico contemporâneo do rap nacional e precisa ser escutado nos tempos de hoje e nos de amanhã também.