Música

[ESPECIAL] Zé Manoel — Cura e proteção

“O que eu queria com esse disco era justamente evocar esse orgulho e essa riqueza. De lembrar o quão rico é nossa cultura, o quão rico é nossa história. De como nós somos diversos nas cores, nos comportamentos e nas culturas”.

Zé Manoel (Foto: Divulgação)

Zé Manoel

Há algumas semanas me deparei com a melhor produção em que pude conhecer em 2020. Do Meu Coração Nu (2020) foi o meu primeiro contato com a obra de Zé Manoel, cantor nascido em Petrolina, cidade do interior do estado de Pernambuco que tem divisa com a Bahia.

De Petrolina, Zé foi morar em Recife, fez música na Universidade Federal e começou a estudar piano em Petrolina mesmo com a professora da região.

Para quem ainda não o conhece, A Pista vai contar um pouco de trajetória pessoal, profissional e as expectativas para o futuro de um dos maiores artistas brasileiros da atualidade.

Um palco italiano

“Eu sempre perco a conta, mas esse é o meu quinto disco, porque é o terceiro autoral, aliás é o terceiro de músicas inéditas. É o quinto contando com um DVD que eu lancei no ano passado, Delírio de um Romance a Céu Aberto (2019), que foi gravado em São Paulo no Teatro Itália”.

Quando conversamos sobre a sua trajetória profissional, Zé Manoel contou como foi a experiência de trabalhar com artistas que sintetizam o que é a miscelânea chamada música brasileira como Fafá de Belém, Juçara Marçal, Ava Rocha, Juliana Perdigão, Arthur Nogueira e Virginia Rodrigues.

Esses foram alguns dos nomes que participaram de um DVD de escala monumental. Foi um show todo feito no Teatro Itália com direção de Paulo Borges e lançado pelo selo Joia Moderna no final do ano passado.

“Meu primeiro CD foi gravado e lançado em 2012, se chama Zé Manoel. Ele foi gravado em Recife, eu morava em Recife ainda. Depois dele, eu lancei o Canção em Silêncio em 2015 e que foi um disco patrocinado pela Natura Musical. Muita gente passou a me conhecer através desse disco, nacionalmente falando, fora de Recife. O meu primeiro disco me projetou mais em Recife, em Pernambuco, na Bahia, mais no Nordeste.”

O segundo disco de Zé teve projeção um pouco maior para fora dos estados do Nordeste e muita gente passou a conhecê-lo por meio deste projeto produzido por Carlos Eduardo Miranda — mais conhecido como Miranda, um dos mais influentes produtores musicais no Brasil e que morreu em 2018.

Além disso, o trabalho contou com a produção de Alexandre Kassin, arranjo de Letieres Leite e bateria de Tutty Moreno. Sacanagem, né?. Depois desse disco, em 2016, Zé Manoel se mudou para São Paulo e lançou o disco Delírio de um Romance a Céu Aberto. O álbum que saiu pelo selo Joia Moderna e na realidade nem era para ser um disco de carreira, seria um soundbook com vários intérpretes cantando músicas de seu primeiro e segundo disco.

“Ele [o disco] foi premiado no Prêmio da Música Brasileira como Melhor Projeto Especial. Em 2017, a gente fez o show, gravou o show e 2019, a gente lançou o DVD, sendo que eu já estava trabalhando nesse CD novo no Do meu Coração Nu. Esse disco Do meu coração Nu começou a ser gravado no ano passado. A gente deu uma pausa, voltou a gravar esse ano e lançou agora.”

A transcendência afrobrasileira

A primeira coisa em que me veio à mente quando comecei a escutar Do Meu Coração Nu foi Clube da Esquina e depois Metá Metá de Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França. Clube da Esquina pelo início operístico, com piano muito presente, crescente e que desenha as escalas vocais de Zé Manoel. O final de História Antiga com aquele “uuuh uuuh uuuh” me fez querer ter uma filha, para embalá-la cantarolando e transmitindo a energia de que por mais difícil que seja, ainda há esperança e eu cuidarei dela.

Metá Metá porque logo na segunda faixa, Zé inverte toda a lógica em que o álbum poderia ter. É o terreiro de Candomblé chegando em nossa jornada musical, com complexidade, proteção e esperança. Afrobrasilidade, atabaques e Orixás nos dão o Axé para viver e sobreviver em um momento do mundo que a espiral da humanidade está no declínio.

Claro que ao longo da jornada o álbum tem seu próprio destino, mas a sensação de transcendência é a mesma. Eu perguntei para Zé quais são as influências musicais em sua carreira e principalmente em que nortearam este álbum.

Segundo ele, suas influencias são vastas. Tom Jobim foi uma referência no início de sua carreira, o seu toque de piano talvez tenha um pouco dessa influência, mas Johnny Alf sem dúvidas é uma grande referência. Neste disco ele tenta ao máximo trazer as suas referências pretas, de artistas pretos, como Nina Simone e como Paulo Diniz, compositor de Pingos de Amor. Em Pra Iluminar o Rolê, existe uma levada das músicas de Paulo Diniz.

Nina Simone está presente na música Canto para Subir que é inspirada na You’ve Got to Learn em que a cantora fala: “Você tem de aprender a sair da mesa quando o amor já não está sendo servido”, além de Adupé Obaluaê, em que tem um toque de piano remetente ao piano de Nina Simone.

“Que ótimas referências que o álbum lhe remeteu. Que bom, fico feliz, porque adoro Clube da Esquina, adoro Metá Metá, Juçara Marçal. Eu acho que acaba ressoando porque tanto por serem de fato influências minhas também nesse álbum eu tentei me aproximar da cultura preta em vários aspectos. Tanto musical, quanto na história, quanto nas referências a outros artistas, a outros trabalhos, às músicas, enfim. Por isso que em algum momento tem de fato ali algo que pode remeter ao Clube da Esquina, Milton, que pode remeter a Juçara Marçal, o Metá Metá.”

Para mim, o álbum começa nos apresentando uma fotografia do mundo hoje. Na faixa seguinte e nas faixas subsequentes, eu me senti como se Zé estive me protegendo metafisicamente deste mundo. A construção de sua religiosidade e como ela o guia em sua obra tem relação com a presença tanto de Iemanjá quanto Oxum em sua vida. Elas estão muito presentes em seus discos.

“Meu Orixá está no final do disco que o Obaluaê que é onde eu estou pedindo proteção e fazendo uma oração. Ele é o Orixá das doenças e da cura. Então, assim, depois de revirar tantas feridas, no final eu peço proteção para que ele cure, essas dores que inevitavelmente surgem quando a gente mexe nesses assuntos. Então eu evoco, os ancestrais para nos proteger realmente no decorrer de todo o disco e termino com essa vocação de cura.”

A música final também tem outro significado, que é a cura do produtor Luizão Pereira que contribuiu com a produção do disco com Zé Manoel e que tratou um câncer ao decorrer da gravação do álbum, fez a cirurgia e a quimioterapia durante o processo de desenvolvimento do disco. Essa música se tornou um mantra para o time de Do meu Coração Nu. A música foi lançada antes do disco, com um videoclipe gravado em salvador, com Gil Alves dançando, dirigindo e roteirizando e uma equipe toda de Salvador.

Cinematografia Nouvelle vague

“Que massa essa analogia que você fez. Na primeira música, eu começo o álbum trazendo uma visão triste e mexendo numa ferida, que é uma ferida muito dolorosa e profunda para toda comunidade preta, indígena, periférica. Na música seguinte de fato, levando para o rio, naquela figura materna, pedindo proteção. Assim como na terceira faixa, tem a voz de Beatriz Nascimento que ao mesmo tempo ela está passando uma mensagem muito importante, mas também é uma mensagem contundente de uma forma muito amorosa com aquela voz de mãe.”

Na música seguinte, Notre Histoire é a mesma coisa, uma continuação disso. Revirar os baús atrás dessa história, atrás dessas referências e dessa raiz para nos fortalecermos.

São absurdos os solos de piano neste álbum, mas em Notre Histoire tem uma ambientação excepcional, digna de trilha sonora de qualquer filme da Nouvelle Vague. A elaboração na obra de Zé Manoel é algo natural, genuíno, sem pretensões à genialidade, mas o que não significa que ele não a atinja a partir de seu processo criativo.

Em relação à ambientação de suas músicas de fato existe um lugar de genialidade. Até pode parecer que Zé Manoel quer que sua obra soe genial, que as pessoas ouçam e pensem como é excepcional, mas não é essa a linha de pensamento dele.

Divulgação

“O meu pensamento é que você ouça e veja aquilo que eu estou cantando. Que você ouça e ao mesmo tempo você sinta aquilo que eu estou falando. A minha intenção é criar recursos para que a música cresça em dimensões, de fato, a ideia é criar um sentido de ambientação para que ela se projete como imagem, se projete como sensação. Meu processo criativo já vem assim: quando eu componho a música eu já penso em como projeta-la “

Zé Manoel começa o álbum com a vontade de chorar ao lembrar de uma história antiga, mas nem tão antiga assim e termina com um canto de cura, de proteção e de celebração. Do Meu Coração Nu é a obra em que precisava para me motivar, me conectar e transformar minhas produções. Era o incentivo estilístico que eu precisava. Seu álbum me abençoou para continuar lutando em 2021.

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