Cinema

“O Oficial e o Espião”: a decadência no cinema de Polanski

Novo filme do diretor franco-polonês traz sua versão do famoso caso Dreyfus que dividiu a França e mostrou a força do antissemitismo na época

O Oficial e o Espião
Uma das cenas iniciais do filme retrata a cerimônia de degradação militar de Alfred Dreyfus (Louis Garrel), posicionado à frente dos soldados

O Oficial e o Espião (2019) — Roman Polanski

O Oficial e o Espião” é um filme de 2019 dirigido pelo cineasta franco-polonês Roman Polanski. O roteiro foi escrito por Polanski em parceria com o inglês Richard Harris, autor do livro “O Oficial e o Espião” em que a obra se baseia.

A história se passa no final do Século XIX e retrata um dos eventos mais marcantes da França — o caso Dreyfus. Alfred Dreyfus, um judeu capitão de artilharia do Exército Francês, foi acusado e condenado injustamente por traição ao supostamente ter fornecido segredos militares ao Império Alemão. Ele foi sentenciado a cumprir prisão perpétua na distante Ilha do Diabo, uma colônia penal localizada na Guiana Francesa, completamente isolada de tudo e todos.

O título original do longa em francês é “J’accuse” (Eu acuso) e faz referência à uma carta do grande escritor Émile Zola dirigida à Félix Faure, presidente da Terceira República Francesa na época, publicada no jornal L’Aurore em protesto à condenação de Dreyfus. O texto trazia diversas acusações de irregularidades cometidas na investigação e na posterior condenação do soldado de origem judaica. Você pode ler a publicação na íntegra em português aqui.

Polanski dá o tom de “O Oficial e o Espião” nas cenas iniciais do longa

A cena inicial é bastante emblemática e talvez seja a mais impactante do filme. Ela é filmada em um plano geral extremo, recurso comumente usado para enfatizar a dimensão de um local. Também é realizado um movimento panorâmico/ horizontal da câmera que serve para ilustrar toda a grandiosidade numérica do Exército Francês e a magnitude daquele acontecimento. Outro detalhe digno de nota é o estado do céu que está coberto de nuvens carregadas, um prenúncio da tempestade político-social que se avizinhará com o histórico caso que dividirá a França.

Em sequência é registrada a cerimônia da degradação militar de Dreyfus. Todos os patentes militares do soldado em praça pública sob o olhar de ex-companheiros de corporação e do público enraivecido que brada ofensas antissemitas.

Na cena posterior há um diálogo-chave entre o Coronel Georges Picquart, protagonista da história, e os generais Boisdreffe e Mercier à respeito do espetáculo de humilhação pública presenciado pelo primeiro. “Como estavam os ânimos no final da Cerimônia?”, pergunta General Mercier, ao que Picquart responde enfaticamente: “Como se um corpo saudável tivesse sido resgatado de uma praga e a vida retomasse seu curso” .

A metáfora utilizada por Picquart, responsável por investigar o caso Dreyfus mais a fundo após assumir a chefia do serviço secreto, dá uma pista interessante sobre o caminho que Polanski pretende trilhar em “O Oficial e o Espião”. O que está em jogo é o definhamento da saúde da França como um organismo social. O país e seu conjunto de valores que antes eram sagrados como a liberdade, a justiça e a igualdade estão em em crise. A decadência moral do período é dissecada e exposta pelo cineasta polonês através da reconstrução do panorama político-social dos tempos do julgamento Dreyfus.

Pôster oficial do filme com o título original em francês contrapõe Major Picquart (Jean Dujardin) e Alfred Dreyfus (Louis Garrel)

Decadência: um elemento comum na obra de Polanski

A decadência é um tema recorrente em outras obras de Roman Polanski como em “Chinatown” (1974) e “O Pianista” (2002). “Chinatown” possui Jack Nicholson no papel de um detetive que, ao investigar um caso comum de traição, se depara com a corrupção moral presente em diversas esferas da cidade de Los Angeles nos anos 30. “O Pianista” é protagonizado por Adrien Brody no papel de Władysław Szpilman, um pianista judeu-polaco renomado que realmente existiu. O diretor mostra todo o processo de definhamento da sociedade polonesa após a invasão da Polônia pela Alemanha Nazista e a perseguição aos judeus vivida pelo personagem principal.

Em “O Oficial e o Espião” esta queda moral também está em evidência. O uso de cores predominante escuras sem muito contraste na fotografia tem um papel essencial nesse mundo em estado de decomposição. O vermelho da calça do uniforme dos soldados é a única cor que se sobressai um pouco, mas mesmo ele parece desgastado como certos valores herdados da tradição francesa de lutas e conquistas de direitos. Vale lembrar que o vermelho é uma das cores da bandeira tricolor francesa que carrega um significado revolucionário e histórico por ter sido adotada oficialmente após a Revolução Francesa.

Propositalmente também não há glamour nem mesmo nas cenas filmadas no interior de instituições de prestígio da época, como o próprio exército e o governo. Mesmo o prédio em que opera a unidade do serviço secreto francês está decadente por dentro e por fora e serve como analogia à própria França. O exterior da construção é velho e gasto. Seu interior é todo empoeirado.

O antissemitismo estava enraizado em todas as camadas da sociedade francesa e também em grande parte de outros países europeus no Século XIX. Um sinal da tragédia anunciada que viria a tona com o holocausto nazista ocorrido no Século XX que matou milhões de judeus em campos de concentração e chocou o mundo inteiro.

O Oficial e o Espião” coloca um holofote em valores fundamentais da tradição do pensamento ocidental que se consagraram após a Queda da Bastilha, evento marcante da Revolução Francesa. Princípios como justiça, direitos humanos, democracia, liberdade, igualdade correm o risco de ficarem apenas no papel se não forem defendidos por indivíduos íntegros informados por uma imprensa independente. Não há nada mais atual que isto.

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