
(Esta é a segunda parte da matéria de principais leituras do ano de 2020, leia aqui a primeira parte)
Nossa situação de extrema desesperança política e humana — o que particularmente me provocava uma certa angústia — muito me inspirou a selecionar autores que tratassem desse assunto. São livros nos quais os acontecimentos em si não são tão relevantes, mas sim o desenvolvimento psicológico e as aflições dos personagens.
Os três livros que indicarei a seguir são perfeitos para iniciação dos respectivos autores. Segue então a seleção de livros que mais me marcaram nesse fatídico ano:
A Morte de Ivan Ilitch (1886) — Liev Tolstói

A novela escrita por Tolstói é ótima para se ingressar na literatura russa, pois além da estória ser bastante concisa e breve, contém muitos pontos autobiográficos. O autor procurou levantar assuntos que o incomodavam bastante em sua nova configuração de vida e retorno à escrita — como o peso da morte e o significado da vida.
“Foste manhã ou noite, sexta-feira ou domingo, era tudo indiferente, o que havia era sempre o mesmo: uma dor surda, torturante , que não sossegava um instante sequer; a consciência da vida que não cessava de afastar-se sem esperança, mas que ainda não partira de todo; a mesma morte odiosa, terrível, que se aproximava e que era a única realidade; e sempre a mesma mentira. Para quê então os dias, semanas e horas do dia?”
(A Morte de Ivan Ilitch, pg. 57 — Editora 34)
Algumas características que regem a literatura russa estão fortemente presentes na obra, como o niilismo e o conceito do “homem supérfluo”. Nós d’A Pista discorremos mais profundamente sobre a obra em uma matéria com a entrevista ilustre de Flávio Ricardo Vassoler, que é doutor em Letras pela USP e pós-doutor em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA).
Mrs. Dalloway (1925) — Virginia Woolf

“A Sra. Dalloway disse que ela mesma ia comprar as flores.”
Com esse emblemático começo — que somente os escritores mais geniais conseguiram reproduzir, a exemplo de Camus em O Estrangeiro e Kafka em A Metamorfose — Virginia Woolf inicia seu grande e primoroso romance. Narrado em fluxo de consciência, o livro irá se debruçar em um dia na vida de Clarissa Dalloway, jovem aristocrata inglesa que está a preparar uma festa.
No percurso passamos a tomar conhecimento de seus conflitos intrapessoais mais intensos e cruzamos também com muitos outros personagens secundários que também são de grande importância para a trama, a exemplo de Septimus Warren Smith: neurótico de guerra que funciona como um duplo da protagonista.
“A morte era um ato de rebeldia. A morte era uma tentativa de se comunicar; pois as pessoas sentiam a impossibilidade de atingir o centro, o qual, misteriosamente, lhes escapava; a intimidade virava separação; o arrebatamento extinguia-se, ficava-se só. Havia um abraço na morte.”
(Mrs. Dalloway, pg.186 — Editora Autêntica)
Virginia Woolf adotou muitos dos aspectos da literatura russa em sua escrita, priorizando o desdobramento psíquico e o sofrimento humano, o que resulta em diálogos e passagens bastante interessantes e enriquecedoras na obra.

“Não espere pelo juízo final. Ele se realiza todos os dias.”
O autor franco-argelino Albert Camus foi bastante destacado nesse ano pelo seu romance A Peste, mas venho chamar a atenção também para um outro livro do escritor absurdista.
A Queda é um pequeno romance de 1956 em forma de monólogo. O nosso protagonista é um confidente que se declara como “juiz penitente” e em sua confissão nos relata todos os acontecimentos que culminaram para a sua queda pessoal e psicológica. O ponto é tentar justificar toda a sua culpa perante a sociedade e também nos oferecer suas visões de vida, criticas sociais, religiosas e também amorosas.
“Acredita-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos.”
(A Queda, pg. 84 — Editora Record)
Como toda a bibliografia de Camus, a ideia do absurdo está estritamente exposta na obra, além da ideia do Mito de Sísifo. O livro foi escrito após a publicação de O Homem Revoltado — polêmico ensaio antiautoritário pelo qual o autor foi duramente criticado por intelectuais franceses, incluindo Jean-Paul Sartre.
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