“Acreditamos que os filósofos nos munem de ideias para dar conta de problemas que eles vislumbraram, mas que não deixam de ser nossos”, comenta Rafael Lauro, um dos criadores do site Razão Inadequada

Razão Inadequada
Razão Inadequada é um blog criado em 2012 por Rafael Lauro e Rafael Trindade, amigos com formações distintas — o primeiro se formou em filosofia e o segundo em psicologia. Além da idade — ambos têm 32 anos — o que une os dois é o amor à filosofia que se expressa de um modo nada ortodoxo.
O site disponibiliza gratuitamente conteúdo relacionado à área de filosofia, psicologia e artes por meio de textos produzidos pelos dois em uma linguagem coloquial e acessível até para pessoas não familiarizadas com determinados temas e autores que costumam ser restritos ao ambiente acadêmico.
Os textos publicados são bastante didáticos e servem como ótimas introduções à obra do autor escolhido pelo leitor. Os filósofos favoritos dos criadores do Razão Inadequada são Espinosa, Nietzsche, Deleuze, Foucault e Camus. A maior parte do material disponível é dedicada a pensadores que os fundadores admiram.
O blog também possui um podcast semanal intitulado Imposturas Filosóficas desde o ano retrasado em que debatem de um modo bastante descontraído e informal com convidados dos mais diversos tipos a partir da leitura dos próprios textos que publicam. Já participaram do programa nomes como o jornalista e professor Clóvis de Barros, a psicanalista Suely Rolnik e a escritora e filósofa Marcia Tiburi.
O site também fornece cursos presenciais e à distância, além de possuir uma revista que atualmente está na terceira edição. O Razão Inadequada é um projeto independente financiado pelos próprios usuários e leitores que podem escolher entre três planos disponíveis para contribuir com a manutenção do portal e ter acesso à conteúdo exclusivo.
A Pista conversou com o Razão Inadequada sobre o filósofo Espinosa e sua ciência de afetos, a importância da filosofia nos dias de hoje, o microfascismo e o fascismo presente no imaginário coletivo e o ambiente atual das redes sociais.
Entrevista
A Pista: Como surgiu a ideia de criar o Razão Inadequada?
Razão Inadequada: O Razão Inadequada surgiu de uma amizade. Sentíamos a necessidade de dar novas formas às conversas que tínhamos sobre filosofia. Passamos uma madrugada discutindo e escrevendo o que se tornaria o nosso primeiro texto, hoje, revisado, continua no site com o nome: por que uma razão inadequada? A resposta continua a se abrir a nós conforme outros filósofos vão aparecendo em nossas conversas e se tornando novos textos.
Há dois anos, decidimos abandonar os empregos fixos para cuidar com mais carinho do site, que estava já se transformando em outras coisas: revistas, cursos, grupos e podcasts. O site começou a ser financiado colaborativa e coletivamente, permitindo a nossa dedicação praticamente exclusiva a ele. Dizemos sem medo que é um dos pontos de maior constância em nossas vidas.
AP: Espinosa é um dos autores preferidos do Razão Inadequada. O que vocês consideram mais atual de sua filosofia e por que gostam tanto dele?
Razão Inadequada: Espinosa foi um filósofo que sofreu muitas injustiças. Não nos referimos apenas a sua excomunhão aos 23 anos. O seu pensamento mesmo foi achatado e reduzido duplamente: por um lado, um cartesianismo esquisito, por outro, um precursor do hegelianismo. Sua filosofia, no entanto, é muito mais do que isso. Podemos resumir seu projeto geral em um questionamento de três pilares que permanecem de pé, a despeito de todos os ataques: a superstição religiosa, a tirania política e a servidão ética. Contra essa tripla-ignorância que sustenta tantos modos de vida tristes, pensadores como ele são aliados de todos os tempos.
AP: No episódio #17 de Imposturas Filosóficas sobre Micropolítica vocês falam que somos inundados por afetos políticos tristes e acredito que essa afirmação faz muito sentido ao se pensar no clima atual do ambiente virtual permeado de agressividade e toxicidade. Acreditam que a teoria dos afetos de Espinosa poderia ajudar a diagnosticar a origem do clima tóxico atual das redes sociais além de fornecer algum tipo de remédio?
Razão Inadequada: A ciência dos afetos proposta pela Ética de Espinosa é uma caixa de ferramentas enquanto conceitos que respondem aos problemas das recorrentes práticas do pensamento que insistem em desprezar os afetos como irracionais ou incompreensíveis. Então, ainda que bastante anacronicamente, a resposta é sim.
Algo que nos vêm à mente quando pensamos nas redes é o fechamento da experiência da diversidade em pequenos grupos que só se comunicam entre si. Se há algo que a filosofia espinosista pretende dar conta é da multiplicidade. Um corpo e uma mente capazes de ser afetados de múltiplas maneiras são, por esse motivo, mais potentes. Assim, poderíamos partir de uma primeira hipótese de que algumas redes sociais não são verdadeiramente redes, pois isolam os nós em bolhas onde não circulam senão o mesmo, o de sempre, o repetido.
AP: Que outros autores e obras poderiam ser úteis e relevantes para pensar outra perspectiva para as redes sociais de hoje? Vocês têm alguma hipótese ou questionamento que possa ser colocado para que se possa começar a pensar na construção de um ambiente mais libertário ou descentralizado que estimule outro tipo de relações humanas no ambiente virtual?
Razão Inadequada: A filosofia sempre foi uma maneira bastante singular de usar o pensamento para responder a problemas que se colocam de maneira também bastante particular. Acreditamos que os filósofos nos munem de ideias para dar conta de problemas que eles vislumbraram, mas que não deixam de ser nossos. Ainda que os autores clássicos da filosofia não tenham dito uma palavra sequer sobre a internet, eles nos mostram muito sobre o uso ativo do pensamento, seja como crítica, seja como criação. Mais do que um ou outro filósofo, nossa resposta seria a própria filosofia, como exemplo de um uso ativo dessas nossas capacidades, em contraste com a crescente passividade do consumo de conteúdo virtual.
AP: Na edição #11 do Imposturas Filosóficas vocês debatem seu texto “Não é preciso ser Triste para ser Militante” inspirado em “Para uma Vida Não Fascista” de Michel Foucault. Grande parte da discussão do episódio parte da postura de militantes, mas muita coisa da conversa também parece válida para se pensar a experiência de pessoas “comuns” que utilizam as redes sociais diariamente e reclamam como estão tendo sua saúde prejudicada por esse ambiente. A postura do usuário é reativa na maior parte das vezes, nunca afirmativa de algum valor ou propositiva. Concordam com esse diagnóstico?
Razão Inadequada: Em relação às redes sociais, tendemos a concordar, sim. Como dissemos, elas parecem menos redes do que caixas de ressonância onde se reverbera aquilo que acontece e, se somos inundados de tristeza pela nossa própria condição política e social, é isto que acaba ressoando e invadindo nossos corpos. Há, no entanto, alguns usos ativos possíveis e também alegres, mas não conseguimos pensar como isso pode se dar se permanecer confinado às redes.
AP: Outro tema caro a outros autores que vocês gostam bastante como Foucault, Deleuze e Guattari é o de “microfascismo” que parece bem relevante atualmente. Vocês poderiam explicar sucintamente em que ele consistiria? Como podemos combater o microfascismo presente em cada um de nós que é explícito nas redes sociais não apenas por certa parte de uma militância, mas em todas as pessoas “comuns”?
Razão Inadequada: O tema do fascismo é um dos grandes temas da filosofia do século XX, por motivos bastante evidentes. No Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, que é da década de 70, os termos do fascismo eram colocados no sentido de um delírio social paranoico, dos deslocamentos de um desejo em um misterioso campo de auto repressão, inclusive enunciado por Espinosa: como entender que as pessoas “combatam por sua salvação como se fosse por sua servidão?”.
Essa questão parece inesgotável, mas seja lá qual for a abordagem, não podemos pensar que o fascismo está apenas no outro. É um delírio que nos atravessa enquanto sociedade, mas mais do que isso, é um investimento de desejo que formata nossas relações. Assim, combater o microfascismo, como chamaram, começa por descobrir onde esses investimentos foram feitos em nós mesmos, onde nos habita o colonizador.
AP: A psicologia ou outro campo do pensamento conseguiria explicar por que o tom do discurso na internet é tão agressivo e belicista? Esse modo de se expressar é suscitado pela lógica do algoritmo da internet em que o engajamento ou alcance de uma posição radical alcança um público bem maior ou seria algo que estava reprimido nas pessoas e elas só conseguiram dar vazão a esse sentimento com o advento das novas tecnologias?
Razão Inadequada: Uma das respostas possíveis é que a internet possibilita uma agressão que não tem consequências. Podemos falar o que quiser sem sermos responsabilizados por isso. É a chance de “colocar para fora” todas as nossas maiores frustrações. Parece uma espécie de catarse coletiva. O único problema é que as pessoas do outro lado são muito reais e sofrem enormes abalos por isso. Outro problema é a linguagem escrita, ela possui apenas a si mesma (diferente da fala que possui tons e entonações). Ou seja, para se fazer ouvir, no mar de comentários, torna-se convidativo elevar o tom e apertar o CapsLock.
Estes sentimentos agressivos sempre estiveram aí (humanos possuem sentimentos humanos há muito tempo e continuarão possuindo). A diferença é que agora eles possuem uma caixa de ressonância onde podem se encontrar mais facilmente e se fechar para a diferença com a mesma facilidade. As consequências disso são assustadoras, mais pelo uso da tecnologia do que pela natureza dos afetos. É urgente pensar nossa relação com a tecnologia, para remodelar (moderar, diria Espinosa) estes afetos.