
Assim que recebi o e-mail com os lançamentos da Editora Todavia do mês de fevereiro, um título me saltou aos olhos: “Nevada”, de Imogen Binnie, que vinha acompanhado de uma sinopse um tanto quanto curiosa:
Não conhecia a autora e muito menos o livro, mas logo me encantei pela viagem que essa história prometia proporcionar. Maria Griffiths, a personagem principal, foi uma excelente companhia durante as 3 semanas em que estive com ela, embora se ela existisse na vida real acharia isso um absurdo. De fato, essa história não é o que eu chamaria de impactante, mas ao mesmo tempo ela tem o potencial de causar muito, e merece demais a alcunha de “clássico da literatura queer estadunidense”.
Em primeiro lugar, o livro me fez regressar a um estágio meio esquecido da minha vida, uma fase meio punk, meio rock n’ roll, com muita música dos anos 80 e 90. A menção à Courtney Love foi um forte estímulo para isso, e desde então o álbum Live Through This (1994) não sai mais da minha playlist. Enfim, esse lado punk rebelde da Maria é essencial para entendermos o seu comportamento: ela aprendeu a ser cheia de si, a se impor, mas por baixo de toda aquele amontoado de roupas e maquiagem, há uma pessoa que só quer ser realmente compreendida e abraçada.
Durante toda a sua jornada de autodescoberta (que nos é apresentada aos pouquinhos no decorrer da leitura), ela focou em estudar, ler, conhecer a realidade trans de outras pessoas, e o caminho para isso foi a internet. Grande entusiasta de fóruns e blogs, Maria aprendeu a se expressar e a se conhecer de verdade dentro desse espaço, onde a presença é sobretudo incorpórea. Menciono essa característica da internet, porque ser uma pessoa trans, segundo Maria, é “nunca ter certeza de quem sabe que você é trans, nem do que essa informação poderia significar para a pessoa. Viver pisando num terreno social movediço e esquisito.” (p. 13) Na internet, você pode escolher a sua bolha e, ainda por cima, criar uma personalidade da forma como quiser, afinal, ninguém está te vendo a não ser que você permita.
O “ser” em um mundo real é ainda um problema para ela, pois “Você só não quer que a sua personalidade engraçada, encantadora, complicada e esquisitona seja apagada pelas ideias que as pessoas têm na própria cabeça (…)” (pp. 13-14). A própria autora, Imogen Binnie, reconhece a importância desses fóruns (como o Fictionmania) para a compreensão de si mesma, além de afirmar que esse foi o primeiro espaço em que foi publicada e lida.
Em segundo lugar, esse livro promete e entrega uma bela reflexão sobre gênero e performance. Para mim, uma mulher cisgênero, é até que descomplicado quebrar com as normas de gênero ou tabus (roupas, maquiagem, pelos corporais), e quando eu digo descomplicado, não quero dizer que seja fácil, ou até mesmo que mulheres cis não se encontram, em alguns momentos, querendo performar mais feminilidade. Mas a conversa muda totalmente de tom quando pensamos na importância dessa performatividade de gênero para uma mulher trans, por exemplo. Maria não quer simplesmente se entregar aos elementos “femininos”, isso vai contra tudo que já estudou sobre a hierarquização de gênero e sexismo. No entanto, ao mesmo tempo, ela deseja esconder todos os traços de um corpo masculino que ainda a assombram. Ela quer, às vezes, não ser vista como trans.
Maria parece ter dois leões dentro dela: quer ser transgressora e rebelde, mas às vezes só quer passar despercebida, porque se cansa de encarar os olhares que a identificam como trans. Sua namorada, Steph, pode se revoltar contra a performance de gênero o quanto quiser, afinal, ela é uma mulher cis, vista pela sociedade como tal. Maria parece querer ir pelo mesmo caminho, mas é quase que imediatamente colocada nesse lugar de inconformidade. Por isso, a relação delas é sempre plana: Maria não deixa Steph acessar sua subjetividade, pois ela sabe que por mais que a ame, ela jamais conseguirá compreendê-la de verdade.
É nesse frenesi que Maria decide escapar de toda a sua obediência e comodismo. Quando deixa pra trás sua vida em Nova York e se vê chegando em Nevada (finalmente entendemos o título do livro), ela encontra em James H. o que um dia ela mesma foi, e vê nisso uma oportunidade de acolher sua eu do passado, oferecendo um ombro amigo para um desconhecido com aparente inconformidade com o gênero. A partir daí, conhecemos mais sobre esse novo e inesperado personagem, além de conseguir acessar um lado de Maria que ela jamais deixou aparente – nem para Steph, e nem para quem lê o livro.
“Nevada” não é um livro complexo, não é mirabolante e é escrito de uma forma tão confortável e informal, que você se sente realmente amiga de Maria. Eu acho que essa é a beleza dessa história: ela não te leva para lugar algum a não ser que você queira (ou precise).
Em tempo: se souber inglês, leia já esse texto escrito pela autora Imogen Binnie chamado Notes on Nevada: Trans Literature and the Early Internet. Se não souber inglês, o texto felizmente foi traduzido e está disponível nas últimas páginas da edição lançada pela Todavia.
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