Séries

Com sensibilidade, “Cidade de Deus: A Luta Não Para” subverte a proposta original do filme

Cidade de Deus: A Luta Não Para

Lançada em agosto na HBO e na Max, a série “Cidade de Deus: A Luta Não Para” é livremente inspirada no clássico filme “Cidade de Deus” (2002) de Fernando Meirelles e no livro homônimo de 1997 escrito por Paulo Lins. A primeira temporada tem seis episódios, com uma média de 50 minutos de duração. A produção já foi renovada para uma segunda temporada, mas ainda não há previsão de chegada.

Além do protagonista Buscapé (Alexandre Rodrigues), vários rostos conhecidos pelo público estão de volta. Alguns personagens que não tiveram tanto tempo de tela no longa aparecem com mais frequência e profundidade, como Berenice (Roberta Rodrigues), Barbantinho (Edson Oliveira) e Cinthia (Sabrina Rosa). Eles são os pilares da comunidade, cada um à sua maneira, e são três dos mais cativantes integrantes do elenco.

A narrativa se passa em 2004 e fatores novos estão presentes no dia-a-dia daquele lugar, como a presença do BOPE, os milicianos e o armamento próprio do exército, que agora está disponível para todas as partes envolvidas nesta guerra.

Buscapé, que agora é um fotógrafo consagrado, cumpre novamente o papel de narrador que ocupou no filme, mas seu tom de voz e sua atuação são mornas demais. A história deslancha mesmo quando o roteiro confia no potencial dos outros intérpretes, que não precisam de nenhuma mediação para se tornarem interessantes ao público.

Buscapé (Alexandre Rodrigues) em "Cidade de Deus: A Luta Não Para". (Foto: Divulgação: Max)
Buscapé (Alexandre Rodrigues) em “Cidade de Deus: A Luta Não Para” (Foto: Divulgação/ Max)

A cena inicial faz referência à primeira cena do longa, a famosa sequência da perseguição de uma galinha que está prestes a virar churrasco. Pretende-se fazer uma homenagem logo de cara, com uma montagem que recria aquela atmosfera caótica. Este resgate ao passado é interessante para mostrar a conexão dele com o presente e, de quebra, recolocar o espectador dentro daquele universo. Apesar disto, é quando a série começa a ressignificar a história original que “Cidade De Deus: A Luta Não Para” se torna especial.

Fernando Meirelles é um dos produtores do projeto, mas isto não impediu este produto audiovisual de subverter a proposta da produção original que a inspirou parcialmente.

Os atores são majoritariamente os mesmos, mas a sensibilidade que impregna a história é diferente. Há um olhar mais atento para a interioridade destas criações fictícias, as quais são inspiradas em pessoas comuns, moradores de comunidades. A intenção é humanizar estas pessoas que historicamente são desumanizadas pela sociedade, pelo estado, pela mídia e muitas vezes pelo cinema também. Os roteiristas conseguiram construir pessoas complexas, com várias camadas, sonhos e desejos.

Os traficantes não são mais os únicos protagonistas, mas a guerra entre eles também marca presença na trama. O conflito principal da primeira temporada se dá entre os criminosos Curió (Marcos Palmeira) e Bradock (Thiago Martins). Há um contraste interessante entre Curió – uma pessoa relativamente calma e equilibrada – e Bradock, seu “filho” adotivo, que é rebelde e impulsivo. A diferença de personalidade dos dois lembra um pouco as de Bené e Zé Pequeno, outro aceno ao filme.

Fotografar ou filmar não é um ato neutro. A obra de Meirelles estiliza bastante a violência, a morte e os corpos periféricos e negros. A nova produção, que teve direção geral de Aly Muritiba (que também foi responsável por “Cangaço Novo” recentemente), tenta fazer justamente o contrário. Há um cuidado maior em não espetacularizar estas mortes. A câmera, seja ela a de Muritiba ou a de Buscapé, está preocupada com outra perspectiva. A morte ainda é um tema inescapável, mas a vida com todas as suas imperfeições merece ser registrada.

O formato seriado favorece muito a proposta dramática desta sequência em ser um diálogo crítico com o legado de “Cidade de Deus“. Esta continuação talvez não funcionasse se fosse realizada como um longa-metragem. A produção da O2 Filmes está mais interessada em explorar as dinâmicas de poder da comunidade e construir a subjetividade dos seus personagens. Em um mercado de produções culturais incontáveis de remakes e spin-offs que parecem mais preocupadas em se apoiar em uma nostalgia vazia, “Cidade de Deus: A Luta Não Paramostra que é possível homenagear um trabalho de sucesso do passado e criar algo completamente novo ao mesmo tempo.

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