Cinema

Uma conversa com Paulo Sacramento sobre curadoria, cinema e a programação da Mostra “1974 – 50 anos depois”

Paulo Sacramento é cineasta, montador e curador. Sua filmografia reúne curtas, longas de ficção e também de não-ficção. Sua estreia na direção foi com o documentário “O Prisioneiro da Grade de Ferro” (2002), obra que lhe rendeu o prêmio da crítica do Festival de Gramado, o de Melhor Documentário em É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários e uma indicação ao Festival de Veneza. Seu último longa foi o “O olho e a faca” de 2019. Como montador, Paulo colaborou com trabalhos prestigiados como “Amarelo Manga” (2002) de Claudio Assis, que venceu o Prêmio de Melhor Filme no Festival de Brasília, e o longa “A concepção (2005), de José Eduardo Belmonte, que também lhe rendeu o prêmio de Melhor Montagem pelo mesmo festival.

Recentemente, Sacramento foi o responsável pela curadoria e a idealização da Mostra “1974 – 50 anos depois” (que foi realizada de 19/09 à 29/09) , a terceira edição, que acontece desde 2022 na Cinemateca Brasileira e reúne filmes que completam cinquenta anos de seu lançamento. Entre os trabalhos exibidos desta vez estavam clássicos do cinema mundial como “O Poderoso Chefão 2”, “Chinatown”, “Uma Mulher Sob Influência”, “Cenas De Um Casamento” e “Massacre da Serra Elétrica”. Além da curadoria das três edições do festival, Paulo também foi o responsável pela maior parte dos textos presentes em um catálogo com os filmes exibidos na Mostra deste ano, o qual foi distribuído gratuitamente a todos que compareceram ao evento.

A Pista conversou com Paulo Sacramento sobre o trabalho de um curador, a programação da Mostra “1974 – 50 anos depois” e sobre a história do cinema brasileiro e mundial.

A entrevista a seguir foi realizada presencialmente em 29 de setembro, no último dia da Mostra, na parte externa da Cinemateca Brasileira. Para uma maior fluência do texto, parte da conversa foi editada para facilitar a leitura. Leia abaixo.

Entrevista com Paulo Sacramento

Conrado (A Pista): Paulo, além de cineasta, montador e produtor, você também é curador. Você foi o curador dessa Mostra e das edições anteriores. Como você se tornou um curador?

Paulo: Eu tinha um trabalho que eu ia fazendo paralelo aos meus trabalhos autorais de edição e de montagem, que era de resgatar algumas obras de alguns autores que eu gostava, alguns de quem eu era amigo, e de quem os filmes estavam praticamente inacessíveis. Cheguei a fazer isso com a obra do Jairo Ferreira, que era um crítico de cinema e que fez filmes na época do Cinema Marginal, e depois com Aloysio Raulino, um documentarista bem importante que foi meu professor na ECA. Os filmes dele eram muito difíceis de se ter acesso e nesse projeto, a gente lançou um box com quatro DVDs, bastante coisa mesmo, que era um material muito legal e que quase ninguém tinha visto. Sempre que fazia isso, acabava fazendo uma Mostra junto. Depois, o Jairo Ferreira morreu e eu fiquei cuidando da obra dele, daí fui relançar um livro que chamava “Cinema de Invenção”, mais uma edição do livro que fazia anos que estava inacessível, não tinha para comprar; daí, eu fiz uma Mostra no CineSesc, aí de lá para cá, de vez em quando, surgiam umas ideias de fazer algumas coisas… e na pandemia surgiu uma ideia de fazer essa Mostra específica dos cinquenta anos. Estava tudo parado e tal, e eu pensei: “pô, seria legal quando voltar juntar uma coisa assim” e eu estava fazendo cinquenta anos na época também. E tinha uma história engraçada: quando entrei na ECA e fui fazer cinema, queria começar a “fazer cinema”; o filme que estava fazendo cinquenta anos naquele ano era o “Cidadão Kane”, então eu fiquei pensando “e hoje em dia, qual filme teve cinquenta anos atrás?”, e daí surgiu a ideia, uma ideia que todo mundo gosta e que a Cinemateca abraçou desde o começo, então tem tido uma repercussão bacana, muito público e tal, já fizemos três anos. Espero que a gente continue fazendo.

O cineasta, montador e curador Paulo Sacramento
O cineasta, montador e curador Paulo Sacramento

Conrado (A Pista): É isso mesmo que eu ia perguntar. Quantas edições vocês almejam fazer?

Paulo: Não tem limite, né? Essa ideia da Mostra é boa porque sempre vai ter filmes que vão estar fazendo cinquenta anos, mas também eu sei que tudo tem um começo, meio e fim, então não dá para saber de quanto vai ser esse ciclo. Se vão ser três anos, se vão ser dez, se vai chegar um momento em que eu vou ter que me afastar porque já estaria programando os filmes que eu fiz, e daí fica cabotino (risos). Mas vamos fazendo, cara, aqui no Brasil é viver um ano por vez. Agora é tentar garantir a Mostra do ano que vem, ver se vai rolar.

Conrado (A Pista): Como que o curador separa o gosto pessoal dele na hora da seleção da programação de uma Mostra? Dá pra separar o gosto pessoal dele? Não dá pra você colocar só os filmes que você gosta, né?

Paulo: É… porque senão acaba virando uma Mostra muito restrita. Nessa especificamente, eu quero fazer o mais abrangente possível. Então tem muito filme de arte maravilhoso, umas obras-primas e tal, mas eu queria mostrar o que está acontecendo nesse ano. Estava tendo o filme do Charles Bronson, “Desejo de Matar”, que influenciou todo mundo, um cinema muito grande. Até o Tarantino, por exemplo, se pegar o livro dele, é o filme mais citado ali entre os muitos que ele cita. O “Emmanuelle”, por exemplo, é um outro filme francês, que era chamado de pornô soft na época. Tem tudo a ver passar isso, porque as pessoas às vezes olham e falam: “pô, no Brasil era pornochanchada e no exterior o Coppola fazendo Poderoso Chefão”… eu falo: “mais ou menos, né?”. O filme mais visto na França era “Emmanuelle”, que era um filme erótico, então existia essas coisas que a gente tem que entender. Em 72, por exemplo, quando a gente começou a fazer a Mostra, eu não pude passar esse filme, mas foi o ano que foi feito “Garganta Profunda”, que foi o filme pornô mais famoso de todos os tempos, isso teve uma influência grande nas outras cinematografias, então acho que o legal é tentar passar esse panorama. Claro que tem o meu gosto pessoal… no final entre um filme e outro eu acabo escolhendo o que acho mais relevante, mas nem sempre é o meu predileto. É difícil eu tirar um filme que eu ame, não passar esse filme, mas a ideia é fazer uma Mostra que seja bem completa e que várias correntes possam se interessar em ver. Nessa agora tem documentário pra caramba, coisas super importantes, o filme sobre a Guerra do Vietnã, nem tinha acabado a Guerra do Vietnã ainda, um documentário super importante, tem um documentário super intimista sobre um cara falando da ex-namorada dele no Japão, que é um filme maravilhoso e também super atual, o Iracema, [filme] brasileiro, por exemplo, que mistura essa coisa de doc e ficção, tem tudo a ver com o que tá acontecendo agora no Brasil: a direita, a coisa da Amazônia, queimada, a coisa da mulher, tudo é muito atual, impressionante.

Conrado (A Pista): Recentemente, o próprio Jorge Bodanzky, diretor de “Iracema – Uma Transa Amazônica”, ganhou uma exposição no IMS. Ontem teve a exibição de Iracema” e um debate com o diretor, como foi? Você mediou o debate, como estava a sessão?

Paulo: Foi muito legal, bem cheio. A gente fez uma sessão nas duas salas do filme dele, todo ano eu tenho umas loucurinhas que eu coloco, então eu queria passar um filme da Mostra que passasse ao mesmo tempo nas duas salas, uma em 35 MM e na outra em DCP restaurado pra saber se as pessoas chegando aqui falam “só quero ver DCP restaurado ou quero ver a película mesmo que esteja riscada”, porque tem um fetiche também. A gente fez isso no ano passado com o filme italiano “Comilança”, que é um filme muito legal. Esse ano conseguimos fazer com “Iracema”, um filme brasileiro, e foi muito bom. Só que não deu para eu saber, porque encheu as duas salas (risos).

Conrado (A Pista): Você mencionou a importância do resgate desta produção do cinema da Boca do Lixo em um dos textos que escreveu para o catálogo da Mostra. Tem alguns curtas na programação da Mostra que são da Boca do Lixo, não é mesmo?

Paulo: Tem, e tem filmes também. A gente tem um especificamente que é o “Adultério – As Regras Do Jogo”, do Odyr Fraga, que é um cara que só filmou na Boca do Lixo, e hoje vai passar o filme do Candeias, que é um cineasta típico da Boca do Lixo também. O Mojica também é um cara muito identificado ali, ele começou antes um pouco, mas toda aquela movimentação da Boca era o ambiente dele, a produção que se fazia toda ali. Então a gente tenta resgatar um ou outro filme, mas tem muitos filmes que eu gostaria de estar passando e que não tem cópia e que a gente não teve como gerar uma cópia para nós. Esse ano a gente fez quatro filmes, dois deles em película, cópias novas, e dois deles foram escaneados em 4K. O ano passado foram cinco, depende um pouco das possibilidades do laboratório aqui da Cinemateca de fazer, mas tem filme que a gente não consegue, tem filmes que eu precisaria ver antes e não tem nem como ver para saber se vale a pena fazer aquele esforço de resgate em cima daquele filme porque são muitos filmes. E essa produção da Boca do Lixo teve muito preconceito, né? A classe média falando “que horror esse cinema muito popular, é apelativo e não sei o quê”, de repente vão passando os anos e o cinema tem essa característica de que as pessoas voltam a se interessar e querem saber para entender aquela época. O único jeito de entender aquela época é você ver esses filmes, ver como é que as pessoas se expressavam naquele momento, então é um documento também, não é só os filmes documentários que trazem, a ficção também tem uma carga assim muito importante de dizer como é que era a realidade daquele momento.

Conrado (A Pista): Por isso que você faz vários tipos de filme? Você faz curta, longa de ficção, não-ficção… é por causa disso também?

Paulo: Eu acho que sim, eu me interesso por tudo. Eu desconfio um pouco da especialização, mesmo o Mojica, por exemplo, que é um cara pioneiro no terror no Brasil, ele não fez só filme de terror, no começo da carreira ele fazia faroeste, drama, filme infantil, fez de tudo, fez até filme erótico depois, mas eu acho que é interessante você transitar por várias áreas. Mas cada um também tem a sua pegada, o Khouri fez sempre o mesmo filme de certa maneira e eu adoro, eu acho muito interessante ver as nuances entre uma coisa e outra.

Conrado (A Pista): Cada diretor tem seu estilo e cada curador também. Você acha que tem diferença entre o “Paulo montador” e o “Paulo diretor”? De certa forma, você está sempre selecionando algo para mostrar.

Paulo: Quando eu estou realizando um filme o “Paulo diretor” é um, o “Paulo montador” é outro. O “Paulo diretor” tem que captar uma coisa ali que tá acontecendo na hora e tentar ter sobra, você não sabe o que vai usar ainda. O “Paulo montador” é o contrário, fica nas minúcias, jogando fora o que não tá perfeito, então são maneiras diferentes de trabalhar, de se colocar. E o curador então, não tem nada a ver, é outra coisa totalmente diferente, é o meu lado de cinéfilo um pouco, de curtir ver o filme dos outros, não os que eu queria fazer, eu quero ver como é que os outros faziam.

Conrado (A Pista): Seu último filme foi “O olho e a Faca” em 2019. Você tem algum projeto de filme em mente no futuro?

Paulo: Não, cara, estou traumatizado com essa coisa de fazer filme. Eu comecei a fazer filme com dezenove anos e estou com cinquenta e três agora. É muito tempo dando murro em ponta de faca, correndo atrás, sempre lutando contra. Chegou numa hora que eu falei: “cara, talvez, se eu voltar a ter muita vontade, né?”. Nada me impede de mudar de ideia de novo e querer fazer o filme daqui um tempo, mas nesse momento não tenho nenhuma vontade de fazer um filme. Cada filme que eu fiz demorava sete anos, oito anos para fazer. É muito tempo. A gente vai ficando mais velho, já não tenho tanto tempo assim. Eu quero fazer coisas mais rápidas. Eu sou de uma geração que não nasceu com essa coisa de streaming, então eu tinha uma outra relação com a maneira de fazer e de ver os filmes. Essa coisa coletiva era muito importante, não ficar em casa vendo uma coisa que você não sabe. Tem uma característica do streaming agora que é quanto menos você for autoral mais espaço você tem para trabalhar. Então uma série, por exemplo, tem cinco diretores e quanto mais esse diretor fizer uma coisa pasteurizada que pareça com o que o outro também tá fazendo é o que a série precisa. Alguém define como é que é e um monte de gente faz aquilo e, pra mim, isso é um anti-cinema. Eu quero saber por que que o filme do Pasolini só o Pasolini pode fazer, por que que um filme do Buñuel que está passando agora aqui só o Buñuel pode fazer. Não tem outra pessoa que vai fazer um Buñuel genérico e no streaming um pouco é isso, é o reino do genérico e daí não me interessei muito em entrar nessa coisa.

Conrado (A Pista): É um esvaziamento… tem muito conteúdo agora, por isso que a questão da curadoria é tão importante. Nesta Mostra, você selecionou um modo das pessoas começarem a ver, por exemplo, o cinema daquela época.

Paulo: Exatamente, é muito filme, né? São cinquenta filmes que a gente passou, deve ter uns quarenta longas e dez curtas mais ou menos. Pra eu chegar nesses quarenta longas, eu vi cento e quinze longas. Então, eu vi e fui selecionando, “esse é parecido com esse”, não precisa passar esses dois, são bons, mas esse aqui já dá ideia desse tipo de produção, e daí você faz um catálogo e o catálogo também não dá para você ficar enchendo de muito texto, porque ninguém vai ler tudo aquilo. Fica bonito, mas a comunicação hoje em dia é diferente, então a gente faz uma coisa bem curta pra pessoa conseguir pegar o catálogo e ler rápido e se interessar por um filme que não conhece ainda. Tem essa coisa bem visual que acho bem importante, bater lá uma foto e fala “pô, olha que legal” aí vê o que que é: “esse filme aí o cara era meio anárquico, esse filme deu problemas para o cara porque aconteceu tal coisa, ganhou um prêmio”, então você dá alguns elementos e daí a pessoa tem que vim ver, porque o negócio é o filme, assistir o filme.

Conrado (A Pista): É outra relação com o objeto também, ele está em evidência.

Paulo: Outra coisa que eu acho legal do catálogo é que, ainda mais hoje em dia, não dá para ver tudo. A gente sabe que não dá, quando você é curador da Mostra você quer que tudo tenha coerência. Ninguém vai assistir quarenta longas nessa Mostra, só eu vou ver esses quarenta longas, então, eu penso assim, se alguém assistir dez já é bastante. Normalmente a pessoa assiste uns três ou quatro, mas de repente a pessoa não conseguiu ver, mas ela viu lá e tá interessado, então ela pode ir buscar também por causa do catálogo. Eu acho isso importante, a gente insistir no livro físico pra Mostra não acabar, porque se não a Mostra acaba e não deixou nada. Eu acho legal ela deixar esse rastro, essa coisa de criar, fazer cópias novas dos filmes. Tem quatro filmes que a gente tá passando que se não fosse essas cópias, você não tinha como assistir e a partir de agora vai ter porque essas cópias existem, então os filmes vão passar de novo e isso eu acho importante.

Conrado (A Pista): Se a Mostra tiver sucesso ela influencia outras Mostras desse tipo, isso que é legal.

Paulo: Uma coisa tem que puxar a outra, não ficar parado. A Cinemateca é uma loucura, hoje acaba a Mostra, mas semana que vem eles já têm outra programação e isso é que é bacana e que é difícil também quando a gente está dirigindo os filmes, aquilo lá tem muito começo, meio e fim… daí acaba e você fica num vazio, fala “porra, agora o meu próximo [filme] vai demorar mais sete anos para acontecer?”. É muito louco, uma coisa estranha (risos). Hoje em dia eu tô buscando mais estar sempre em movimento e se eu for voltar a dirigir, eu não quero parar de fazer essas outras coisas, intercalar talvez uma coisa com a outra.

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