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“Dom Casmurro” de Machado de Assis: um romance metalinguístico feito em forma de acusação

Dom Casmurro

Dom Casmurro”, romance publicado em 1899 por Machado de Assis, é considerado um dos maiores livros da história da literatura nacional. O romance é rico em referências históricas e literárias. Ele também se destaca pelo humor, a construção psicológica dos personagens e a ambientação da sociedade brasileira da época e o retrato dos privilégios das classes mais abastadas.

A percepção do leitor muda conforme o tempo, assim como a sensibilidade da pessoa que está lendo. O senso de humor (junto com a sociedade e sua interpretação de determinados tipos de piadas) também muda com o tempo, mas o teor irônico da prosa de Machado ainda arranca risadas do leitor moderno. O autor carioca tem um senso de humor peculiar que costuma imprimir em suas criações, como visto anteriormente em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) e “O Alienista” (1882).

Até a descrição de como Dom Casmurro conseguiu seu apelido, que é narrada no começo do livro, é engraçada. O próprio narrador faz piada consigo mesmo e com as situações que enfrenta. Isto acaba levando o leitor a se identificar com o personagem, e essa identificação é quase automática pelo fato do livro ser escrito em primeira pessoa.

“Dom Casmurro” é o relato autobiográfico de seu narrador Bentinho (Dom Casmurro), que está sob o efeito da nostalgia de um passado perdido. Bentinho foi uma criança privilegiada e mimada, seu pai morreu muito cedo e sua mãe sempre o protegeu. A melhor amiga de sua infância é Capitolina, uma vizinha que depois se tornará sua esposa e mãe de seu filho. Ainda novo, Bentinho é mandado ao seminário para cumprir uma promessa de sua mãe e lá constrói uma amizade duradoura com Escobar – que se tornará amigo íntimo do casal. Posteriormente, na história, ele morre afogado e Capitu parece se comover de forma exagerada quando recebe a notícia. A observação deste acontecimento por Bento desencadeia uma crise de ciúmes no protagonista, que agora suspeita até da paternidade real do seu filho Ezequiel.

Machado de Assis
Machado de Assis (Foto: Wikimedia Commons)

Superficialmente, a história poderia ser lida, se fosse escrita por um autor menos talentoso, como uma simples história de amor perdido ou traição. A genialidade de Machado de Assis torna-a em algo muito mais especial e memorável. O estilo do escritor e a personalidade cínica do seu protagonista são o que fazem esse romance ser diferenciado

Machado dá pistas sobre a personalidade de Bentinho desde o começo do livro. Mesmo no início do romance entre Bento e Capitu, é notável o quanto o personagem nutria ciúmes dela, projetava sinais traiçoeiros na sua personalidade ou então parecia tentar se convencer de que havia sinais de uma traição futura.

Todo o texto parece uma reconstituição dos fatos feita por um promotor para acusar alguém – no caso de Bento, esta causa é a traição de Capitu com Escobar. Bento Santiago estudou direito e se formou como advogado, por isso esta hipótese não pode ser descartada. Outro aspecto que lembra um tribunal em ação são as referências aos capítulos anteriores. Bento fala para os leitores consultarem um determinado capítulo para poderem conectar com o que ele está prestes a falar, quase como se fosse um advogado pedindo os registros da ata de um julgamento.

Outro fator que se destaca em “Dom Casmurro” é o aspecto metalinguístico da obra – uma característica associada à chamada arte moderna, a arte que tem consciência de si mesma, que viria a ser consagrada por outros autores posteriormente. Enquanto narra sua história, o autor também promove reflexões sobre o próprio ato de escrever. Formalmente e esteticamente, a obra é muito inventiva pela utilização deste recurso e pela forma como ele é manipulado por Machado. 

Além deste diálogo riquíssimo entre criador e criatura, Machado também dota seu narrador-personagem da habilidade de interpelar seu leitor. Este recurso moderno tira o leitor de seu lugar passivo de contemplação. Bento usa referências de atividades contemporâneas ao período retratado para o leitor da época se familiarizar com os acontecimentos, que se passam no Rio de Janeiro do Segundo Império. Apesar de referências a obras clássicas da literatura e a importantes passagens históricas, Dom Casmurro ainda é uma leitura que pode ser considerada leve. Os capítulos são curtos e o leitor pode tomar seu tempo para terminar o livro. O narrador costuma lembrar o leitor do que aconteceu no capítulo anterior e faz isso de uma forma não condescendente.

Dom Casmurro” é um romance que se estrutura como uma acusação de seu protagonista ressentido contra sua ex-mulher, que já morreu, após ser exilada pelo marido na Suíça junto com seu suposto filho. O narrador constrói seu caso muito bem e sua expertise na área do direito o auxilia nessa questão, mas o estilo de escrita metalinguística também chama a atenção para a manipulação possível através da escrita. O romance de Machado de Assis possibilita várias chaves de leituras: uma história de amor, um estudo psicológico do seu personagem-narrador, uma análise da sociedade brasileira do período e também uma investigação sobre as manipulações possíveis pela linguagem. Esta riqueza de leituras e interpretações possíveis para uma história que parece simples é o que evidencia a grandeza de um autor como Machado de Assis e sua importância para a história da literatura brasileira.

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