Séries

“O Urso”: uma reflexão sobre a incomunicabilidade

Série chega ao quarto ano de vida batendo na tecla do mesmo dilema

O retorno de “O Urso” (The Bear)

[Contém spoilers da quarta temporada de “O Urso”.]

A premiadíssima série “O Urso” (The Bear) está de volta. A quarta temporada chegou à Disney+ em 25 de junho.

Na primeira temporada, Carmen Berzatto, um renomado chef, está de volta a Chicago para assumir o restaurante de seu irmão, que se suicidou. O espectador é jogado de cabeça dentro deste universo, sem nenhum aviso. Mergulhamos, junto com Carmy, no caos daquele ambiente insalubre para qualquer ser humano funcional. A montagem e a trilha sonora são os destaques desta temporada inicial. A combinação dos dois elementos cria a atmosfera caótica que remete a um ataque de ansiedade em forma de série de TV.

Já a segunda temporada tem um ritmo mais cadenciado e uma atenção maior aos personagens secundários. A terceira, por fim, é um misto dos dois, encontra espaço para o caos e a contemplação. 

A quarta temporada não parece um novo capítulo da série. Anteriormente, cada temporada tinha um estilo diferente. Esta nova temporada parece mais com uma continuação da terceira temporada do que algo genuinamente inédito. Não há grandes alterações de estilo e ritmo. Os personagens estão nos mesmos dilemas e não parecem superá-los, o que acaba sendo frustrante para o público. 

A história continua do final da temporada anterior. Os funcionários do restaurante estão lidando com a repercussão da resenha negativa que o estabelecimento recebeu. O tio Jimmy e o seu assistente aparecem para dar um ultimato à equipe de Carmy. Eles têm dois meses para começar a ganhar dinheiro ou o restaurante precisará fechar as portas. Em um gesto dramático, eles colocam um relógio gigante com uma contagem regressiva que indica o tempo de vida que o The Bear dispõe. Este parece um recurso repetido, mais um artifício forçado para dar um senso de urgência que, em tempos anteriores (e mais inspirados) da série, estaria inscrito no ritmo da montagem.

Carmy segue brigado com seu primo Richie. As brigas entre os dois no começo são engraçadas por seu exagero, mas depois se tornam cansativas. Marcus perdeu a mãe e está tentando processar essa dor. Sydney está refletindo sobre a possibilidade de se aventurar em outra empresa. A única trama inédita é a de Ebra. Um dos funcionários mais velhos do restaurante e resistente às mudanças, agora ele se mostra mais proativo no trabalho. Mesmo assim, os showrunners não parecem tão preocupados assim com a vida pessoal dele, como já estiveram com outros personagens secundários como Marcus, Richie, Sugar e Syd.

A incomunicabilidade dos personagens de “O Urso”

Entre todos os personagens da série, o arco de Carmy parece o menos interessante e é natural que uma série sofra quando esse é o caso do seu protagonista. Ele segue com os mesmos problemas da primeira temporada, não parece ter mudado nada. Sua história é super batida: o gênio torturado que não sabe se comunicar com os outros e parece condenado desde o nascimento por causa disto. Apesar disso, sua incomunicabilidade, que afeta todas as suas relações com outras pessoas, também está presente em outros personagens e talvez seja um dos elementos mais interessantes presentes no roteiro. A dificuldade de se comunicar parece indissociável de um tipo de masculinidade que alguns homens aprenderam na prática – principalmente os da família Bearzatto. Não é natural para nós falarmos ou desabafarmos sobre certas coisas e, quando tentamos, é até difícil nomear alguns sentimentos específicos. Quase todos os personagens da série têm problemas para se comunicar, não apenas os homens. Não é à toa que um dos poucos lugares em que Carmy consegue se abrir é em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, um espaço “seguro” em que há regras claras para se expressar e ser ouvido sem ser julgado – um ambiente bem diferente de sua família, que parece só saber se expressar gritando.

O Urso
Cena de “O Urso” (Foto: Divulgação/ FX)

A agressividade presente em uma certa ideia de masculinidade é bem representada em uma cena chave da segunda temporada, a famosa sequência em que o Carmy acaba dentro do freezer por sua incapacidade de resolver um problema simples que envolve simplesmente ligar para o cara que deveria consertar a maçaneta. Enquanto está preso lá, ele começa a discutir rispidamente com Richie, os dois trocam insultos pesados. Perto do final da briga, Richie diz que ama o primo, mas até o modo como ele diz aquilo parece uma imposição, algo violento. Eles sempre gritam um com o outro, é como se não soubessem se expressar de outra maneira, mesmo quando estão falando de um sentimento afetuoso como o amor. Na quarta temporada, Carmy repete esta cena em um formato tragicômico: ele finalmente tenta se desculpar com sua ex-namorada Claire, mas parece uma criança que está aprendendo a falar enquanto faz isso, e também solta um “eu te amo” como um desabafo. 

Toda a série parece ser sobre essa impossibilidade ou o desconhecimento de outra forma de existência no mundo que não seja através da violência verbal ou física. Os efeitos desta incomunicabilidade na saúde mental são o ponto alto da série, apesar disso, outros aspectos da história parecem repetitivos e mal desenvolvidos. Desde o começo, quase todos os personagens estão lidando com o luto de alguma maneira – a perda de Mike afetou todos os que trabalhavam no restaurante, além de amigos próximos e outros familiares. Já é uma baixa suficiente para se discutir os efeitos do luto, da perda de alguém importante, saúde mental, mas a série dobra a aposta e mais personagens vão perder os pais ou chegar perto disto: A mãe de Marcus morre no final da segunda temporada e Sydney também quase perde o pai nesta quarta temporada – além dela já não ter uma mãe desde os quatro anos. É como se não existisse outro plot possível para estes personagens que não envolvesse algum acontecimento trágico.

A crítica negativa que o restaurante recebeu no universo da série poderia tranquilamente servir como uma crítica dessas duas últimas temporadas. Tem algo ali no meio que poderia ser especial, mas essencialmente é uma bagunça que deveria ser repensada. O episódio Bears (o sétimo desta  temporada) talvez tenha sido o ponto alto desse ano e mostra um tipo de trégua ou reconciliação entre os membros dessa grande família chamada The Bear (a de sangue e a do trabalho).

A série poderia se encerrar tranquilamente na primeira temporada, mas o sucesso foi tão grande que os showrunners decidiram continuar a história. Nossa geração hiperestimulada foi facilmente atraída por aquela atmosfera caótica e ao mesmo tempo apaixonante de um pequeno restaurante familiar – o antigo The Beef of Chicagoland. Anteriormente, o espectador não tinha nem tempo para respirar ou pegar seu celular, mas agora a série está sofrendo porque precisa se tornar outra coisa – assim como o próprio Carmy e seu restaurante. A produção não pode mais sobreviver apenas com aquelas cenas aesthetic de comida. Um caminho possível pode ser desenvolver melhor os personagens de uma forma que provoque o público – como nos seus bons tempos. A incomunicabilidade dos personagens talvez atravesse também os criadores da série, que não sabem como dizer o que querem, ou talvez já falaram tudo que podiam. 

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