Séries

“Raul Seixas: Eu Sou”, a impossibilidade de se conhecer alguém de verdade

Raul Seixas: Eu Sou

Criada por Paulo Morelli, a minissérie “Raul Seixas: Eu Sou” chegou à plataforma da Globoplay em 26 de junho – data em que se comemora os 80 anos de nascimento de Raul. Assim como Raulzito, que criou uma arte difícil de colocar em uma caixinha para ser definida facilmente, a produção de oito episódios tenta ser mais livre e experimental que as típicas biografias e documentários dedicados a famosos. O absurdo e o humor típico da obra do cantor baiano impregnam toda a estética deste trabalho.

A abertura dá o tom do estilo e da estrutura da produção: o letreiro do título é acompanhado pela voz de Seixas cantando um trecho de sua canção “Gita“: “eu fui, eu sou, eu vou“. A série transita entre diferentes períodos da vida do artista baiano de uma forma muito natural. O espectador conhece várias fases diferentes do músico: o Raul criança, o Raul produtor, o Raul artista, o Raul pai, o Raul alcoólatra. Qual seria o Raul “de verdade”? Talvez ele seja todos eles ao mesmo tempo ou nenhum deles. Morelli não pretende responder a esta pergunta e talvez nem o próprio Raulzito soubesse a resposta deste enigma. A provocação e o mistério são partes intrínsecas do quebra-cabeça que Raul criou para sua persona. Paulo Morelli tenta dar conta desta multiplicidade que constitui a personalidade de um dos maiores nomes do rock brasileiro.

A primeira cena da produção da O2 Filmes recria um acontecimento curioso ocorrido durante um show do artista em Caieiras (SP), em 1982. Já em baixa na indústria e sofrendo com as consequências do seu alcoolismo, ele subiu completamente bêbado no palco e começou a balbuciar coisas incompreensíveis no microfone e, por isso, o público pensou se tratar de um impostor se passando por seu ídolo. Arremessaram coisas nele, tentaram invadir o palco para agredi-lo. A polícia interviu e tomou o partido dos acusadores. Raul foi levado para a delegacia e foi liberado apenas quando sua parceira Kika trouxe seu RG. “Se eu não sou Raul Seixas, quem eu sou?”, ele perguntou no meio da confusão. O absurdo acaba se tornando engraçado e triste ao mesmo tempo, mas serve como uma reflexão instigante sobre a “verdadeira” identidade de Raul Seixas – questão central para a minissérie. É possível definir alguém? Quão responsável cada um pode ser por isto?

Outra sequência que exemplifica o humor da série acontece no segundo episódio. “Mosca na Sopa“, mesmo título de uma das suas músicas mais conhecidas, retrata duas versões do primeiro encontro de Raulzito com o escritor Paulo Coelho, que viria a se tornar um dos seus colaboradores mais notáveis. A primeira é uma versão fictícia em que Raul encontra Paulo na praia enquanto os dois avistam um disco voador. A segunda é um pouco mais “pé no chão”, mas também tem um tom meio absurdista: um Raul irreconhecível de terno e gravata visita o ícone da contracultura Paulo Coelho. Enquanto Paulo tinha uma estética de hippie comum dos anos 60/70, Raul se vestia como um pai de família tradicional, um cidadão respeitável, assim como o personagem de sua música “Ouro de Tolo“. Nessa época, ele era um produtor musical para a Philips e foi atrás de Coelho por ter se identificado com um dos textos que este escrevia. Esta cena cria um dilema interessante: Raul estava interpretando um personagem quando se vestia daquele jeito ou esse seria o seu “verdadeiro eu”?

Ravel Andrade na série "Raul Seixas: Eu Sou" (Foto: Divulgação)
Ravel Andrade na série “Raul Seixas: Eu Sou” (Foto: Divulgação)

Há diversas cenas dos dois amigos colaborando em músicas, se complementando na hora de compor letras. As sequências deles escrevendo juntos possivelmente serão os momentos favoritos dos fãs de Raulzito, pois o espectador se sente presenciando a história sendo escrita na sua frente. Raul era muito querido por todos, desde seus pais até seus interesses amorosos e amigos, mas todas as relações se desgastavam perto do final. Um dos méritos desta produção é que ela não pretende justificar moralmente os atos de Raul. Ele é um personagem complexo por si só e com muitas camadas. Os roteiristas não querem nem julgar nem absolver, mas contar quase tudo o que se sabe sobre ele, pois essa parte problemática também é parte do mito que ele e outros construíram.

O que “Raul Seixas: Eu Sou” faz de melhor é oferecer ferramentas para o público tentar imaginar as próprias brisas do Raul enquanto ele compõe, até brincar com isso de uma forma às vezes até meio tosca, mas divertida. Esse tom caricato casa bem com o personagem Raul Seixas, que sempre pareceu mesmo um ator interpretando um personagem e também já se definiu assim diversas vezes. Naturalmente, há algo de exagerado e artificial na sua persona e a série abraça essa estética, incorpora esses elementos na narrativa. O trabalho do figurino ilustra muito bem a excentricidade e expressividade das vestes e gostos de Raul.

A primeira metade da minissérie é bem superior à segunda. A qualidade cai um pouco quando o foco se torna o alcoolismo e o deslumbramento de Raul com a fama. De fato, é necessário retratar esse período que definiu os rumos da vida e a carreira do cantor. No entanto, o modo como esta trama é retratada é um pouco cansativo, pois não é feito de uma forma tão criativa quanto outros aspectos da produção. A série se recupera no episódio final, aquele show histórico de Raul no garimpo é um dos seus pontos altos.

Raul Seixas: Eu Sou” reflete sobre os vários Raul Seixas, sobre personagens, sobre atuação, sobre identidade, sobre se inventar e se reinventar. A produção homenageia Raul com as próprias ferramentas que ele forjou durante sua carreira de sucesso – o humor, a criatividade e a crítica social. Além dessa homenagem a um ídolo de uma geração, a minissérie instiga os espectadores a refletirem sobre suas relações com seus ídolos e a impossibilidade de se conhecer alguém “de verdade”.

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