Cinema

“O Último Azul” e a utopia de um país que realmente seja para todos

A contradição de um futuro que não é revolucionário para todos
Trailer de O Último Azul

Quando em “Perto do Coração Selvagem” (1943), Clarice Lispector escreve “Liberdade é pouco, o que eu desejo ainda não tem nome”, o Estado Novo e os sistemas neofascistas do mundo todos estavam em pleno declínio. Com um governo autoritário e com a perca de liberdades básicas para grande parte da classe artística, a própria noção de liberdade havia se tornado uma utopia durante o governo de Getúlio Vargas, governo este que possuía paradoxos e contradições peculiares, assim como propositalmente o filme de Gabriel Mascaro constrói uma narrativa em que distopia e utopia se mesclam para dar vida a um dos roteiros mais complexos e originais do cinema brasileiro nos últimos tempos e que se estrutura em outros paradoxos interessantes para permitir que o público instigado, busque paralelos com o mundo real, sendo assim uma amostra que o ser humano é constituído por contradições o tempo todo.

A liberdade que Clarice conclama é metafórica, a liberdade que Tereza — personagem da brilhante Denise Weinberg — deseja também é metafórica, ambas têm a ver com o sentido da urgência da vida, da complexidade e do perigo que é se estar vivo e apesar disso viver, tem a ver com a incapacidade de nomeação aquilo que se deseja. Quando Tereza é avisada da mudança de lei de um país distópico que leva todos os maiores de 80 anos para um retiro na Floresta Amazônica, lhes exilando da sociedade para não atrapalhar aqueles que ainda podem ser produtivos ao sistema capitalista, ela argumenta que ainda tem muito a viver. No entanto a lei mudou, agora aos 75 anos os idosos que não são levados para a margem da sociedade já estão sabotando a cadeia produtiva do país, nossa personagem então com 77 anos, se vê em uma situação de que na verdade todos sabemos que em sua maioria, os idosos já são negligenciados pelo sistema que durante toda a sua vida foram fundamentais para seu funcionamento.

Ao passar anos de atividade dedicadas ao capitalismo, Tereza pode agora pensar no que fazer com a própria vida. Quando questionada o que ela não fez antes e que agora quer fazer, ela hesita, teme, mas responde: — Voar. Entre o que se deseja e a castração, aparece uma distopia. “O futuro é para todos”, é o slogan do governo que promete um lar final e isolado para os idosos sob o cuidado das autoridades, ecoando outros momentos históricos do Brasil, em que slogans publicitários tentaram criar uma conexão entre governo e público, como durantes o próprio Estado Novo, o governo de Juscelino Kubitschek, ou o Governo Militar entre os anos 64 e 81, mas afinal, o que acontece com os idosos nesse local? O filme não mostra, mas em uma sociedade em que os idosos aparentemente não parecem mais servir ao capital e já são cartas fora do baralho da vida em si mesmo, Tereza que trabalhou em um refrigerador de couro de Jacaré, parece mais uma das metáforas perfeitas, em que provavelmente a pele e os órgãos dos idosos é o futuro de alguém que ainda pode ser usado para produzir e então até os idosos tornam-se uma mercadoria e um bem de consumo, a serem usados pelo capital.

Em “O Último Azul”, uma sociedade distópica, que ressoa muito do real, é apresentada em contraste com a história de uma mulher que deseja voar, mas que acaba encontrando no sentido do rio a possibilidade de liberdade de uma sociedade segregacionista e autoritária. Se é no céu azul que Tereza imagina se ver livre e traçar seu próprio desejo, é na água e gosma do caracol místico da baba azul que Tereza vai se reencontrar com os pequenos prazeres da vida.

É pelo desvio e pela errância que Tereza se estrutura enquanto sujeito pleno e para isso conta com ajuda de outros personagens extremamente paradoxos, como o navegador Cadu (Rodrigo Santoro) que entrega o estereótipo de homem hétero e marrento, mas esconde um homem sensível e apaixonado, Ludemir (Adalino) que é dono de um planador, mas não consegue colocá-lo para decolar ou ainda Roberta — interpretada pela brilhante Cubana Miriam Socarrás — que é uma freira exploradora das fluentes do Amazonas e vende Bíblias digitais aos povos ribeirinhos, mas não crê no livro sagrado, estes paradoxos ainda estruturam uma fotografia exuberante da natureza.

‘O último azul’: filme brasileiro com Rodrigo Santoro concorre ao Urso de Ouro no Festival de Berlim — Foto: Guillermo Garza/Desvia / Divulgação

A fotografia assinada por Guillermo Garza vai de cenas fechadas e sem vida, para quando Tereza está na cidade cerceada de seu direito de ser, para planos abertos e feitos por cores vivas, como o verde da mata, o azul do céu, o amarelo do sol, ou o misto marrom e preto das águas do Amazonas, quando Tereza parte em sua busca de ser gente. Nunca é tarde demais para se viver.

Rio afora, rio adentro, Tereza é a metáfora de um mundo onde o futuro realmente será para todos se fizermos oposição à sociedade do consumo e ao sistema que acima de tudo preza pela produção que destrói a natureza e a subjetividade humana. Em “O Último Azul”, Gabriel Mascaro que já é bastante aclamado pelos ótimos “Boi Neon (2015)” e “Divino Amor (2019)”, construiu uma linda homenagem ao Norte e a um Brasil possível de ser sonhado, para que isso aconteça basta que consigamos bancar nosso desejo. Para Gabriel e Tereza, é o desejo que nos leva a agir.

O filme segue em cartaz em diversos cinemas na cidade, inclusive no Reag Belas Artes, até 22/10 com horários às 16h20 e 18h20h.

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