Cinema

“Ato Noturno”: acima da narrativa neoliberal, o triunfo do desejo

Com certos ecos de "Suspiria" de Luca Guadagnino, "Ato Noturno" reatualiza o cinema noir para uma narrativa sobre o Brasil, em que identidades são construídas e desconstruídas conforme se vestem de máscaras

O filme de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher vem sendo mais um dos filmes nacionais de destaque deste ano de 2025. Depois de ganharem o Teddy Award, considerado o prêmio mais importante do cinema queer do mundo, em 2018 com “Tinta Bruta”, os diretores voltaram a ser indicados ao prêmio em fevereiro deste ano, na estreia mundial, dentro da seleção oficial do Festival de Berlim festival esse que teve outro filme brasileiro também em destaque, o “Último Azul”. Se, para Tereza, personagem principal do filme de Gabriel Mascaro, o desejo é metáfora de uma busca por liberdade, já em “Ato Noturno”, o desejo é uma necessidade e uma questão de reafirmação da subjetividade.

Matias e Rafael, protagonistas que realizam romance gay no público, e são respectivamente um jovem ator em ascensão e um político com carreira promissora, os dois estão se beijando.
Foto de divulgação Ato Noturno

Se o filme é um thriller político, policial ou um drama gay, pouco importa; o que me parece é a tentativa de justamente questionar as fórmulas do gênero, em que já se espera todo o desenrolar da narrativa. Aqui, os diretores e também roteiristas querem surpreender os telespectadores, brincar com a ideia do tensionamento entre o público e o privado.

A obra quer provocar e se colocar no centro do debate de uma expansão do cinema queer explícito para um público maior, sem que ele seja cancelado por “mostrar demais”, pois boa parte da graça do filme também está aí. Os diretores jogam com a ideia de que o público, pouco a pouco, vai se tornando cada vez mais voyeur, em que trilha sonora – coproduzida e dirigida por Thiago Pethit, fotografia por Luciana Baseggio e montagem de Germano de Oliveira, criam uma atmosfera coesa, que vai em uma crescente quando há o tensionamento e diminuindo quando tudo está mais calmo, que aqui em certa medida evoca até certos elementos de “Suspiria“, como quando há os embates de dança, em que disformas e até mesmo lutas físicas acontecem no palco de teatro que também é o palco da vida.

O filme parte de uma narrativa em que um ator de teatro em ascensão gay começa a se relacionar com um político que também está em ascensão e vem construindo toda a sua carreira para o que acredita ser o grande momento da sua vida: se tornar prefeito de Porto Alegre. Só que, quanto mais eles se tornam figuras públicas, o desejo de transar em lugares abertos ou de serem vistos também aumenta, criando uma situação de tensão, porque ambos precisam desempenhar um papel de masculinidade, em que suas identidades precisam ser suprimidas em razão de uma performatividade de gênero, em que vestir uma máscara social é uma questão básica de necessidade para o escalonamento social.

Trailer de Ato Noturno

Rafael, o político já avisa logo no inicio da obra, “fui mudando de máscara conforme o que eles queriam“, só que Matias, já não parece acreditar muito nisso, e questiona, “E quando a máscara cair? Vai dar problema?” Em uma vida em que todos querem ser protagonistas e não coadjuvantes parece ser necessário não levar muito tempo para se concluir o que se quer ser, quando chega um dado momento de nossa vida.

Se Machado de Assis já falava sobre as máscaras sociais e que, por meio dos seus contos, podemos observar que isto levaria a uma fragmentação da identidade, o mesmo poderia acontecer com esses dois personagens que tensionam sucumbir ao sonho neoliberalista e, para isso, não fazem questão de abrir mão de quem verdadeiramente são, só que, fugindo do clichê óbvio e sonho estadunidense vendido pelo capitalismo, esses dois personagens são constituídos de uma inquietação, que, assim como o filme, o tempo todo, o óbvio nunca é óbvio.

Tem um motivo a câmera fugir do centro, a luz com cores fortes, a iluminação nas ruas. O público é levado a investigar essa atmosfera, que flerta com vários gêneros e, se falávamos de uma reatualização do cinema noir, estamos aqui então falando do que Karim Aïnouz já vem fazendo tão bem nos últimos anos no Brasil, o uso do neon noir, em que uma atmosfera hora saturada e quente fala de um Brasil tropical em que muitas vezes o desejo é que prevalece, seja ele da ordem sexual ou de se bancar aquilo que se quer.

Você sai cansado, mas feliz pela experiência catártica. O filme, que vem sendo muito bem recebido por todos os festivais que tem passado, é uma narrativa que constrói o Brasil que se perde na sua própria ideia de nação. Os personagens estão o tempo todo em um jogo em que suas identidades são desconstruídas e construídas, ao mesmo tempo. Forças opostas que se anulam e fazem desses sujeitos únicos.

O jogo de iluminação, a quebra da quarta parede, dão a dimensão de que quanto mais alto se voa, mais perigoso pode ser para se queimar e pior pode ser a queda, evocando aqui elementos do mito de Ícaro fugindo do labirinto do Minotauro, que, chegando próximo demais ao céu, acha que pode se assemelhar aos deuses do Olimpo, mas então é punido e morre afogado sem poder ser salvo por seu pai.

Foto de divulgação de Ato Noturno

Quanto tempo conseguimos sustentar uma viagem que aparentemente não queremos fazer? O quanto aguentamos sustentar uma máscara em que a sociedade espera e não é o que desejamos? Quanto tempo no topo você aguenta? Você está pronto para ser grande? Todas essas perguntas fazem parte de um roteiro que se sustenta a partir da afirmação de que, para quem está em cima e olha para baixo, as coisas acontecem de forma diferente, bem diferente, mas que também Marcio Reolon e Filipe Matzembacher parecem argumentar que, para sonhar grande, basta estar vivo.

A cena eletrônica vibra, o corpo deseja, e, de volta, cena após cena, vamos sendo surpreendidos até o final, em que um roteiro é finalizado de forma bastante diferente, e, quebrando novamente a quarta parede, termina do mesmo jeito que começou. “Eles estão vindo. É, eu sei.” De forma cíclica esses personagens parecem sair vencedores diante da narrativa daqueles que tentam apagar as identidades em nome de uma falsa abstração dos oprimidos, sendo assim “Ato Noturno” é uma obra em que o desejo é um posicionamento ético consigo mesmo e necessário para a própria sobrevivência em um mundo predatório.

Ato Noturno” é a nossa principal aposta para a primeira edição do Prêmio Prisma Queer e da perspectiva Brasil na 49* Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Logo mais ele estreia também no festival Mix Brasil, o maior festival com temática queer da América Latina, e em janeiro deve estrear nos circuitos brasileiros. Na Mostra, tem mais uma sessão no dia 27/10 às 15:40, no ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA, SALA 3.

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