
Talvez um dos textos de teatro mais famosos do mundo seja “Esperando Godot”, de Samuel Beckett. O texto que faz parte do chamado “Teatro do Absurdo“, no qual se explora a condição humana, inclusive é citado ao longo do novo filme de Javar Panahi. Na peça de Samuel Beckett, dois personagens esperam um terceiro que nunca chega. Aqui, como no teatro, abrimos com a escuridão, mas depois, dois personagens, a partir de um road movie, vão de encontro ao limite ético de justiça e vingança, e nossos dois protagonistas, que se situam no limiar entre inocente e acusado, ao contrário da peça, não ficam no diálogo existencialista.
Se em “Esperando Godot” temos toda a ação se desenvolvendo embaixo de uma árvore com poucas folhas e no meio de uma paisagem com plano aberto — estas duas últimas coisas também presentes na obra do diretor iraniano — e se discutem temas como a natureza do tempo, a alienação, a dominação e a submissão, “Foi apenas um Acidente” é um thriller que flerta também com o trágico e o cômico e que muitos destes temas também aparecem. É interessante quando conseguimos ver uma obra que consegue flertar com tantos gêneros e temas, mas não se perde em si mesma, deixando para um segundo plano a história que quer contar.
A narrativa parte de um acidente em meio à escuridão. Uma família atropela, sem querer, um cachorro e, por bons minutos, temos um cenário de uma noite cortada por sons de corvos — que, em diferentes lugares, carrega o simbolismo de sabedoria, intuição e memória e que aqui vai se mostrar fundamental para o desenrolar dos acontecimentos — e o que era para ser apenas um acidente se mostra, na verdade, uma intricada cadeia de acontecimentos que, por destino ou não, estão conectados.
Vahid e Eghbal se mostram duas facetas de um regime perturbador e opressor que controla o sistema político-religioso do país do diretor, o Irã. Filme que ressoa muito da vida e perseguição política sofrida por Jafar Panahi, desde que este se tornou cineasta e ativista pelos direitos humanos, é também universal, a partir do momento em que se trata de um filme sobre crime e castigo.
Quais são os limites da justiça? Qual é a justiça dos homens e a de Deus? Devemos ser bárbaros com aqueles que foram bárbaros conosco? Existe perdão possível para aqueles que arrancaram um pedaço de nossas vidas, sejam elas simbólicas ou reais? Quando um país está em guerra, até onde a lei pode ser encarnada por indivíduos, sem que necessariamente haja um rito judiciário, e até onde podemos esperar que esse rito seja realmente justo? São algumas das perguntas que a nova obra do diretor tenta responder, e que ontem – 28/10/2025 – a Polícia Militar do Rio de Janeiro resolveu personificar.
Na primeira sessão do filme no Brasil, na Cinemateca Brasileira, Jafar Panahi recebeu das mãos de Renata Almeida, diretora da mostra, o Prêmio Humanidade. O diretor argumentou: “Meus filmes não são sobre vingança ou sobre perdoar, mas sim sobre até quando ciclos de violências vão continuar?” Para ele, ainda é necessário ter uma esperança no futuro e, até por isso, muitas das mulheres aparecem no filme sem véu, mesmo que em lugares públicos elas sejam proibidas de ser vistas sem a vestimenta, embora isto tenha gerado crescentes manifestações e resistências desde a morte de Mahsa Amini.

Em uma postura ética em que o diretor se apresenta como um “narrador” possível de um país que muitas vezes parece dividido entre a religião e o desejo por mais liberdade e menos repressão, ele parece tentar manter um certo distanciamento, em que procura dar destaque para as opiniões divergentes, mesmo aquelas que querem vingança a qualquer custo ou para aquelas que dizem que fizeram o que fizeram, só porque são oprimidos como aqueles que eles torturaram. O sistema que torturou e prendeu todo o arco narrativo do filme é o mesmo que cooptou um jovem trabalhador que muito provavelmente não tinha toda a ideologia dos aiatolás, líderes supremos no controle do Irã. Assim a pergunta fica em suspenso no ar, em que claramente Jafar Panahi assume uma posição, mas esta é subjetivamente construída por ele; cabe a nós, enquanto público, analisar e depreender se concordamos ou não.
Cabe a nós, enquanto país, aqui no nosso caso, tentar entender se a guerra às drogas é sobre as drogas ou não, e se essa chacina foi apenas mais um dos inúmeros acidentes que as forças policiais deste país praticam e, no caso Irã, se os filmes de Jafar Panahi falam sobre sujeitos ou sobre um sistema que perpetua opressão. Talvez ele ganhar a tríade de maiores festivais de cinema do mundo, Cannes, Veneza e Berlim ao longo da sua carreira, seja um indicativo de que ela não se restringe às fronteiras do Irã.
“Foi Apenas um Acidente” terá distribuição no Brasil pela Imovision, em parceria com a Mubi, estreando nos cinemas dia 04/12/2025. A última sessão da MostraSP vai ser hoje, 29/10, às 20:40 no Reserva Cultural, mas já contam com ingressos esgotados.
Importante mencionar que além de ser uma distribuidora de filmes independentes, a Imovison também conta com uma plataforma de assinatura, o Reserva Imovision, nela há uma curadoria bastante interessante de filmes premiados ao redor dos melhores festivais de cinema do mundo, além de muitos clássicos cults que todo fã de cinema deve amar, vale a pena dar uma olhada.
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O diretor foi perseguido pela sua obra, em alguma medida ele é caçado por aquilo que cria. – Esse cenário é no mínimo fascinante, pensando na justiça divina, nessa dívida com seja lá e se existe poder maior. – De todo modo, um filme tocado pelo “lugar” que é “não lugar” o deserto. Assim como nos Estados Unidos o deserto é palco de imigrações “sem lugar”, o deserto de Panahi parece ser o inóspito e radical do humano. Da escuridão a luz que não esquenta, mas queima.
Será que votarmos em um governador a favor de chacinas também não é sobre esse “não lugar de alguns” e o mais vil do humano?
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Acho que ao mesmo tempo que o cinema do Jafar é um cinema político é um cinema de denúncia, mas não só uma denúncia sobre o Irã e sim sobre toda a humanidade. Ele disse em algumas entrevistas que não entendia porque em vários países do mundo certas cenas as pessoas riam, aqui no Brasil foi o mesmo na sessão que eu estava, ele afirmou, se eu passasse esse filme no Irã as pessoas ficariam comovidas, porque até mesmo ajudar o seu pior inimigo está na estrutura de muitas pessoas da nossa população, e que para ele parecia que as pessoas perderam a coragem de perdoar, perderam um certo senso do que é ser ser-humano, e mesmo que por anos o Irã esteja sobre domínios de grupos extremistas e violentos ele acredita muito na necessidade de acabar com os ciclos de violência.
nas palavras dele como está no texto: “Meus filmes não são sobre vingança ou sobre perdoar, mas sim sobre até quando ciclos de violências vão continuar?”
então acho que quando votamos nesses governantes por escolha mesmo, e não por conta de um regime, tem haver com isso que você disse mesmo, o mais vil do humano que já não quer perdoar, quer a vingança custe o que ela custar. mesmo que para isso tenhamos que matar 132 pessoas todos os dias no rio.
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