O diretor Tarik Saleh comentou em Cannes sobre seu último filme, afirmando que muitas vezes existem certos elementos de verdade, ou tentativas de expressar uma verdade, que possibilitam tensionar os limites da lei ou desafiar o poder vigente dentro de um regime autoritário; para ele, é nos tempos de crise que o fascismo e o pior do ser humano se revelam. Para o educador e patrono da educação brasileira Paulo Freire, são a partir dessas pequenas janelas e brechas dos sistemas que poderíamos causar uma revolução de dentro para fora (Pedagogia da Esperança, 1992).
“Águias da República” é o último filme que Tarik Saleh retorna ao Egito para encerrar o que ele chamou de uma trilogia sobre o poder, que ao mesmo tempo soa de forma aguda e profundamente irônica, pois não apenas expõe o autoritarismo de estado, como também mergulha no território ambíguo da propaganda e da vaidade artística, onde todos parecem de alguma forma serem constituídos de contradições, e em algum nível cúmplices, mesmo aqueles que parecem contra o sistema que julgam ser opressor.

Em uma obra construída a partir da metalinguagem, ou seja, um filme que fala sobre a criação de um filme, a narrativa, que também tem seu roteiro produzido por Tarik Saleh, é bastante corajosa e promissora. Este roteiro que explora as contradições basais da condição humana e do sujeito moderno, que a cada novo encontro ou situações parece ter que se adequar a uma nova posição discursiva, parte de um proeminente ator egípcio que é muito popular no país, por fazer filmes de entretenimento e de baixos orçamentos, mas que atinge um grande público de pessoas; até que logo no começo ele é convocado pelas autoridades do país a fazer um filme de propaganda governamental, em que ele interpretará o Abdel Fattah al-Sisi, que controla o Egito desde 2014 de forma autoritária, mas logo uma coisa chama atenção, quem vai produzir e controlar os bastidores das gravações é a esposa do ministro da Defesa, Suzanne, uma intelectual, que parece progressista e crítica ao sistema, mas se beneficia dele.
Assim, o que fica marcadamente explícito ao longo do filme e que também podemos ver na sociedade contemporânea, seja ela política ou não, é que muitas vezes as mesmas pessoas que condenam a manipulação midiática, o uso de novas tecnologias, os discursos extremistas e assim por diante, recorrem a artifícios de poder e a usar esses mesmos “mecanismos” de controle ou produção quando lhe convém. O filme evidencia a hipocrisia daqueles favorecidos pelo sistema e com acesso a certos prestígios, mesmo que muitas vezes estejam sendo críticos e se mostrando indignados aos sistemas que lhes concedem tais benefícios. Aparentemente, na prática, isto parece ficar só na teoria. Entre o que você diz e o que você faz, como você espera que as instituições mudem?
Assim, nenhuma figura sai ilesa. Há sujeitos em pleno conflito subjetivo e objetivo, atravessados por afetos e contradições, navegando em um país em que a moral é sempre negociada e o discurso “correto” muda conforme o ângulo da câmera — literal e metaforicamente.
A tensão também construída na sociedade contemporânea e até da pós-verdade a partir da ideia de produções discursivas, o jogo da imagem versus verdade, e a performance como um norte de construção de uma divisão subjetiva aparecem como forma de individualização e separação do sujeito que busca uma identidade única em meio a coletivos que as pessoas entendem não se encaixar mais.
George Fahmy, nosso protagonista, parece personificar perfeitamente isso. Ele busca se encaixar em um meio termo de atuação, de vida real, de discurso ativista e discurso propagandista do governo, ora sendo visto como pessoa de esquerda preocupada com a liberdade artística e repressão do governo na arte, ora como sujeito conservador, machista, mulherengo, mas contradizendo tudo aquilo que ele acreditava e, claro, o filme traz argumentos e elementos para justificar isso. George cede: “Chega uma hora que, para você não morrer, você cede ao sistema e ao que eles pedem”.

Abrindo outro grande dilema ético para o filme, temos então algo como o diretor jogando para o público, dentro de uma sociedade com discursos tão dicotômicos e ideologias tão enraizadas, em que não abriremos mãos tão cedo aparentemente, é até onde poderíamos ir contra aquilo que acreditamos, dadas certas circunstâncias?
Dentro dessa metalinguagem explorada, temos a ideia de um espelho que funciona de forma distorcida/invertida, pois grandes partes dos personagens ali performatizam uma certa ideia de patriotismo, sinceridade ou resistência, não porque acreditam absolutamente nisso, mas porque sabem que estão sendo observados — por câmeras, pelo Estado, pela sociedade e, acima de tudo, por si mesmos. Tarik Saleh parece sugerir que, no regime do espetáculo contemporâneo, até a resistência pode virar produto, e até a repressão precisa de um roteiro convincente para se legitimar. Assim, discursos opostos se retroalimentam, em que cada pessoa quer ser única, pois não acredita mais no grande estado, em um grande líder ou nos próprios grupos sociais e, por isso, uma crise de identidade parece ser tão marcante no nosso tempo.
Em “Microfísica do Poder” (1979), Foucault argumenta que o poder se manifesta a partir de práticas, discursos e normas que moldam comportamentos e sociedades, sendo assim ele já atua muitas vezes onde menos se fala dele, pois ele já colonizou esses espaços. No filme, George se vê intricado em uma ação que praticamente nunca vai conseguir ser ele mesmo, pois, entre sua vida pessoal, vida de ator, resistente ao regime e colaborador do regime, ele vai ter que, na sua própria cabeça, dividir quais máscaras usar.
A fotografia do filme, realizada por Pierre Aïm, amplifica a sensação de prisão simbólica. Ambientes amplos, mas controlados. Ruas povoadas por sombras de vigilância. Cenas intimistas corroídas pela paranoia e pela sensação de encenação constante. Há tensão até no silêncio — aquele tipo de silêncio carregado, em que a palavra certa pode salvar e a frase errada pode destruir carreiras, reputações ou vidas.
“Águias da República” não oferece respostas fáceis, na verdade nos convida para o desconforto. No fim, o embate ideológico não se dá apenas entre Estado e indivíduo, mas dentro de cada personagem — e, por extensão, dentro do espectador. Quem somos quando as câmeras acendem? E quando elas nunca se apagam?
Ao invés de um manifesto direto, Tarik Saleh entrega um estudo sobre a subjetividade sob pressão, sobre o labirinto da moral em tempos de vigilância e culto à imagem, um filme em que repetidas sequências mostram o protagonista em restaurantes, no carro, no set — sempre com alguém observando, anotando, ouvindo. Às vezes agentes oficiais, às vezes figuras comuns, quase sempre invisíveis até o último momento — não poderíamos deixar de mencionar outro conceito estudado por Foucault: o panóptico. O panoptismo, de acordo com o livro Vigiar e Punir (1975), pode ser evidenciado no filme “Águias da República” por meio da ideia de que o Estado nem sempre aparece, mas seu olhar molda gestos, falas e silêncios.
O longa, que passou por alguns dos festivais mais importantes do mundo e que tem um diretor amplamente premiado nestes festivais com outras obras, será distribuído no Brasil pela Imovision e estreia dia 18/12/2025. Importante mencionar que além de ser uma distribuidora de filmes independentes, a Imovison também conta com uma plataforma de assinatura, o Reserva Imovision, nela há uma curadoria bastante interessante de filmes premiados ao redor dos melhores festivais de cinema do mundo, além de muitos clássicos cults que todo fã de cinema deve amar, vale a pena dar uma olhada.
“Águias da República”, que é um drama sobre identidades impostas, a violência da representação compulsória e o corpo tentando escapar das narrativas que o capturam, dialoga muito com o nosso tempo e se mostra extremamente necessário também para o futuro, o que vem sendo uma marca da Imovision, de trazer para o seu catálogo de filmes, obras que perpassam o tempo e marcam gerações.
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Ao ler seu texto, fiquei pensando sobre esse “ser ou não ser”: como Jung pensava em um Self verdadeiro (um “ser autêntico”) e um Falso Self (um “ser distante do que é”); como Lacan compreende que o sujeito é um falasser — que se faz ao falar de si; e como Byung-Chul Han, junto de Bauman, refletem sobre esse “ser” voltado ao consumo, à performance e ao desempenho.
Afinal, o que é ser? Para você, para o diretor, para a sociedade, para a nação.
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Nossa complexo, são bastante teóricos, e acho que nos dias de hoje é isso, tentamos ser muitas coisas ao mesmo tempo, e no final das contas não somos realmente bons em nada, ou não nos autorizamos a ser nada. Mas ao mesmo tempo também tem lugares, como na academia que se produz o especifico, do especifico, em que a pessoa só sabe falar sobre o assunto x dentro de x, e os conhecimentos interdisciplinares que foram tão importantes para o desenvolvimento da humanidade estão todos deixados de lado. Então como buscar um meio termo entre essas duas coisas, como buscar um equilíbrio entre os discursos antagônicos? Acho que esse filme dialoga muito com isso e você tocou em um ponto central que enrique a análise.
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