Um filme constituído por meio de uma polifonia, ou seja, uma obra em que muitas vozes ganham contorno e espaço. E, sendo mais um do ano em que se investiga uma interpretação da realidade e do ser, “A Natureza das Coisas Invisíveis” atesta que aquilo que os adultos consideram intangível e impossível para uma criança ser entendido às vezes é muito mais fácil do que se imagina.
Sofia, uma das crianças protagonistas do filme, teve que aprender cedo que a morte era uma coisa necessária e que muitas vezes ficar com algo de quem morreu pode trazer mal agouro. É necessário permitir a passagem para o outro plano daqueles que já se foram, pois, como afirma sua bisavó, ligada a uma comunidade tradicional de benzedeiras no interior de Goiás, ficar remoendo e não elaborar o luto pode trazer dor e sofrimento, tanto para aqueles que ficaram como para aqueles que precisam passar para outro plano e ainda não tiveram permissão para tal.
Enquanto isso Glória, nossa outra personagem protagonista mirim, é uma criança que está crescendo e perdendo parte de suas férias e infância em um hospital porque sua mãe trabalha muito. Ela é rodeada de morte, mas não sabe que a morte existe, ela que já quase esteve do outro lado, está viva graças a um milagre e é este milagre que sustenta uma síndrome de salvador na mãe, que se chama Antônia – fazendo alusão aqui a Santo Antônio também conhecido como o santo das causas impossíveis – a mãe acredita que é responsável por ajudar todo mundo já que foi agraciada com o milagre da vida da filha e é enfermeira.
“A Natureza das Coisas Invisíveis” é um atestado do poder de nomear as coisas, de ressignificar lembranças, do cuidado para com aqueles que amamos, é um filme sensível e delicado em que cicatrizes fechadas muitas vezes podem ser reabertas se não cuidadas e para muito além de outras obras que dialogaram com o tema da metafisica deste ano, Rafaela Camelo, diretora e roteirista, mostra que não é necessário intelectualizar um material audiovisual para tocar as pessoas, mas sim que ao se deixar ser levada pela história de inúmeras coincidências e acasos de narrativas reais que acabaram entrando no roteiro de forma improvisada, dão uma consistência em que uma ficção é quase que na verdade um retrato fidedigno da realidade de um Brasil quase apagado, e que hoje resiste em comunidades tradicionais e graças às pessoas que a autora trás de forma muito natural.
O filme que tem feito sucesso pelos inúmeros festivais que tem passado, como por exemplo, a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em que ganhou o Prêmio da Crítica e o Prêmio Prisma Queer, e então foi selecionado para fazer parte do projeto Sessão Vitrine Petrobras, uma iniciativa em conjunto da distribuidora Vitrine Filmes com patrocínio da Petrobras, fazendo com que o filme possa chegar ao circuito comercial em salas selecionadas a partir de 27 de novembro, é um atestado que o cinema independente e queer quer mais patrocínios e incentivos para ganharem as grandes telas, e que nossa comunidade está cheia de boas histórias para contar.

Uma obra de amadurecimento que transita muito entre o real e o simbólico, entre o sonho e o espiritual, e que tem muito também de autobiográfico de Rafaela Camelo, mostra de forma natural um Brasil que nasce a partir da miscigenação cultural e religiosa que são marcas constitutivas de nosso povo, principalmente quanto mais para o interior dos grandes centros urbanos se vai. Um núcleo de personagens, que em certa medida todos têm valor histórico e social e ganham voz no filme, transita entre o catolicismo, o espiritismo, as religiões de matrizes africanas e os conhecimentos ancestrais das nossas comunidades tradicionais, dando a tônica de que, quando se trata de fé e respeito para com as diferenças, é possível enfrentar o luto como algo digno.
Dialogando muito com o livro “A morte é um dia que vale a pena viver“, de Ana Claúdia Quintana Arantes, o filme mostra que, entre lutos finitos e infinitos, simbólicos ou reais, muitos de nós, em certa medida, podemos nos identificar e ser tocados por este roteiro. Mesmo se tratando de uma temática queer, que até demora para ficar clara, mas logo mostra sua potência, é um registro visceral sobre afetos em suas múltiplas formas e que bom que a arte pode ter o poder de tocar e dar sentido àquilo que muitos dizem ser intangível.
A natureza da morte, o limite do sofrimento, os cuidados paliativos para com os nossos doentes, os simbolismos que também se criam em nome do nome morto de uma pessoa trans são uma força esmagadora e arrebatadora desse filme.
“A Natureza das Coisas Invisíveis ainda vai contar com mais uma sessão no Festival Mix Brasil, no dia 19/11 no IMS (Instituto Moreira Salles) às 17h. Recomendamos ficar de olho, pois, sendo uma sessão grátis, os ingressos têm que ser retirados antes e podem esgotar rapidamente.
Siga A Pista em todas as redes sociais (Instagram, Twitter e Facebook) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, séries e música!
Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.
Leia também:


Lendo seu texto fiquei pensando sobre “o que cada um consegue fazer com o que recebe e transmite?” – Recebemos algo da geração anterior, e a partir de uma aposta (sempre no futuro) nos movemos em direção em um fazer de si mesmo. – Como cada um lida com os lutos necessários do desencontro entre o que se pretendia ser, o que se é, o que queriam que fosse, o que pensa ser(?)
CurtirCurtido por 1 pessoa