Cinema

Mix Brasil – “A Natureza das Coisas Invisíveis”

Rafaela Camelo mostra, por meio de uma miscigenação cultural, marca característica de um Brasil plural, e da fé tanto de culturas ancestrais e populares, como a católica, que sim, a morte é um dia que vale a pena ser vivido

Um filme constituído por meio de uma polifonia, ou seja, uma obra em que muitas vozes ganham contorno e espaço. E, sendo mais um do ano em que se investiga uma interpretação da realidade e do ser, “A Natureza das Coisas Invisíveis” atesta que aquilo que os adultos consideram intangível e impossível para uma criança ser entendido às vezes é muito mais fácil do que se imagina.

Sofia, uma das crianças protagonistas do filme, teve que aprender cedo que a morte era uma coisa necessária e que muitas vezes ficar com algo de quem morreu pode trazer mal agouro. É necessário permitir a passagem para o outro plano daqueles que já se foram, pois, como afirma sua bisavó, ligada a uma comunidade tradicional de benzedeiras no interior de Goiás, ficar remoendo e não elaborar o luto pode trazer dor e sofrimento, tanto para aqueles que ficaram como para aqueles que precisam passar para outro plano e ainda não tiveram permissão para tal.

Enquanto isso Glória, nossa outra personagem protagonista mirim, é uma criança que está crescendo e perdendo parte de suas férias e infância em um hospital porque sua mãe trabalha muito. Ela é rodeada de morte, mas não sabe que a morte existe, ela que já quase esteve do outro lado, está viva graças a um milagre e é este milagre que sustenta uma síndrome de salvador na mãe, que se chama Antônia – fazendo alusão aqui a Santo Antônio também conhecido como o santo das causas impossíveis – a mãe acredita que é responsável por ajudar todo mundo já que foi agraciada com o milagre da vida da filha e é enfermeira.

Trailer de “A Natureza das Coisas Invisíveis”

“A Natureza das Coisas Invisíveis” é um atestado do poder de nomear as coisas, de ressignificar lembranças, do cuidado para com aqueles que amamos, é um filme sensível e delicado em que cicatrizes fechadas muitas vezes podem ser reabertas se não cuidadas e para muito além de outras obras que dialogaram com o tema da metafisica deste ano, Rafaela Camelo, diretora e roteirista, mostra que não é necessário intelectualizar um material audiovisual para tocar as pessoas, mas sim que ao se deixar ser levada pela história de inúmeras coincidências e acasos de narrativas reais que acabaram entrando no roteiro de forma improvisada, dão uma consistência em que uma ficção é quase que na verdade um retrato fidedigno da realidade de um Brasil quase apagado, e que hoje resiste em comunidades tradicionais e graças às pessoas que a autora trás de forma muito natural.

O filme que tem feito sucesso pelos inúmeros festivais que tem passado, como por exemplo, a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em que ganhou o Prêmio da Crítica e o Prêmio Prisma Queer, e então foi selecionado para fazer parte do projeto Sessão Vitrine Petrobras, uma iniciativa em conjunto da distribuidora Vitrine Filmes com patrocínio da Petrobras, fazendo com que o filme possa chegar ao circuito comercial em salas selecionadas a partir de 27 de novembro, é um atestado que o cinema independente e queer quer mais patrocínios e incentivos para ganharem as grandes telas, e que nossa comunidade está cheia de boas histórias para contar.

Imagem de divulgação de "A Natureza das Coisas Invisíveis"
Imagem de divulgação de “A Natureza das Coisas Invisíveis”

Uma obra de amadurecimento que transita muito entre o real e o simbólico, entre o sonho e o espiritual, e que tem muito também de autobiográfico de Rafaela Camelo, mostra de forma natural um Brasil que nasce a partir da miscigenação cultural e religiosa que são marcas constitutivas de nosso povo, principalmente quanto mais para o interior dos grandes centros urbanos se vai. Um núcleo de personagens, que em certa medida todos têm valor histórico e social e ganham voz no filme, transita entre o catolicismo, o espiritismo, as religiões de matrizes africanas e os conhecimentos ancestrais das nossas comunidades tradicionais, dando a tônica de que, quando se trata de fé e respeito para com as diferenças, é possível enfrentar o luto como algo digno.

Ted Talks de Ana Claudia Quintana Arantes

Dialogando muito com o livro “A morte é um dia que vale a pena viver“, de Ana Claúdia Quintana Arantes, o filme mostra que, entre lutos finitos e infinitos, simbólicos ou reais, muitos de nós, em certa medida, podemos nos identificar e ser tocados por este roteiro. Mesmo se tratando de uma temática queer, que até demora para ficar clara, mas logo mostra sua potência, é um registro visceral sobre afetos em suas múltiplas formas e que bom que a arte pode ter o poder de tocar e dar sentido àquilo que muitos dizem ser intangível.

A natureza da morte, o limite do sofrimento, os cuidados paliativos para com os nossos doentes, os simbolismos que também se criam em nome do nome morto de uma pessoa trans são uma força esmagadora e arrebatadora desse filme.

“A Natureza das Coisas Invisíveis ainda vai contar com mais uma sessão no Festival Mix Brasil, no dia 19/11 no IMS (Instituto Moreira Salles) às 17h. Recomendamos ficar de olho, pois, sendo uma sessão grátis, os ingressos têm que ser retirados antes e podem esgotar rapidamente.

Siga A Pista em todas as redes sociais (InstagramTwitter e Facebook) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, séries e música!

Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.

Leia também:

3 comentários

  1. Lendo seu texto fiquei pensando sobre “o que cada um consegue fazer com o que recebe e transmite?” – Recebemos algo da geração  anterior, e a partir de uma aposta (sempre no futuro) nos movemos em direção em um fazer de si mesmo. – Como cada um lida com os lutos necessários do desencontro entre o que se pretendia ser, o que se é, o que queriam que fosse, o que pensa ser(?) 

    Curtido por 1 pessoa

Deixe uma resposta