Cinema

Mix Brasil – “Me ame com ternura”: uma mulher que não abre mão de seu desejo

Uma dura crítica à punição histórica da mulher que foge do ideal. - Aqui dialogando com Lacan, Federici, Iaconelli e Dunker, analiso o desejo, a maternidade, a violência institucional e a escrita como base para existir uma mulher, no máximo de sua singularidade.

Me Ame com Ternura” (2025), longa-metragem da diretora francesa Anna Cazenave Cambet, é baseado no livro “Love Me Tender” e autobiográfico de Constance Debré, e chega às salas do cinema brasileiro em 05/01/2026.

O filme acompanha Clémence (Vicky Krieps), uma mulher na casa dos quarenta anos que decide abandonar a carreira da advocacia para se tornar escritora. Neste processo, ela procura se divorciar do ex-marido e resolve contar que está se relacionando com mulheres e experimentando viver algo além do socialmente esperado.

Trailer de “Me Ame com Ternura”

Antígona“, peça clássica da tragédia grega, escrita por Sófocles em 442 a.c., retrata a jornada da filha de Édipo na busca de enterrar seu irmão, mesmo que isso lhe custe a vida.

Tal obra foi analisada pelo psicanalista Jacques Lacan em seu seminário sobre “A ética da psicanálise” (1959–60). Lacan pontua que o desejo, em sua manifestação mais ética, é aquele possível de ser sustentado até as últimas consequências. Ele argumenta que Antígona, sendo uma mulher, castra um órgão símbolo de poder; não por acaso é a única em uma tragédia de tantos homens que consegue de fato sustentar o desejo enquanto um ato.

“Me ame com ternura” sem dúvida retrata uma possível adaptação do princípio ético do desejo, tal qual em “Antígona”. No filme, somos apresentados a uma mulher que, mesmo com a insegurança financeira da mudança de carreira, não abre mão do desejo. Que, mesmo diante da perda da guarda de seu filho, não abre mão do desejo.

Antígona, assim como Clémence, sofre; o sofrimento não pode ser desconsiderado e seria um erro narrar uma história na qual se acredita que existam super-humanos que prescindam do sofrer. Mas ambas não abrem mão do desejo e fazem dele um ato, ato do qual sabem que haverá consequências, mas que estão dispostas a arcar com seus custos.

Imagem de divulgação do filme "Me Ame Com Ternura" - mãe abraçando o filho
Imagem de divulgação do filme “Me Ame Com Ternura”

Retomando o psicanalista francês Jacques Lacan, em seu seminário “Mais Ainda” ou “Encore” (1972–73) — que pode ser interpretado como jogo fônico de “no coração” —, ele argumenta que o conceito de “A mulher” não existe, que mulher enquanto uma designificação só existe quando tomada no singular radical do “um a um”. Para tanto, não existiria “A mulher” como objeto fechado, definido em padrões, mítico por excelência e que pode ser pareado com outros. Que apenas existe “uma mulher”.

Clémence passou a usufruir de si, enquanto corpo, sexualidade e expressão, de modo absolutamente singular. Afastando-se do que então poderia ser considerado o esperado ou ideal para “a mulher”, vive a complexidade de tornar-se “uma mulher” que, não por acaso, abandona as leis (advocacia) para então escrever (tornar-se escritora) e quase reescrever-se para si e para o mundo.

Nesse sentido, Clémence parece estar muito mais próxima do significante de “uma mulher” proposto por Lacan. A Constance Debré, escritora de Love Me Tender, livro em que o filme foi adaptado e ainda é inédito no Brasil, em entrevista à anothermag revelou que queria contar uma história que fosse complexa enquanto personalidade. Ela não queria retratar apenas um aspecto da personagem, mas um recorte temporal que comprovasse diferentes ângulos da experiência de ser.

Por mais que a longa-metragem tenha 2h15, não conseguimos apreender a vastidão do que seja Clémence. Em vários momentos o longa se dedica a abrir pequenos espaços de indeterminação dela, lugares onde não podemos apreender do que essa protagonista seja constituída. E são justamente nesses espaços em que não podemos apreender a protagonista em sua “inteireza” que comprovam a excepcionalidade de cada mulher na etapa de sua criação: a autora, a cineasta, a atriz. E aqui marco como pergunta: o quanto o trabalho teve o primoroso resultado por ter sido sustentado por mulheres muito éticas com sua expressão no mundo?

Imagem de divulgação do filme “Me Ame Com Ternura”

No seminário 23 “Le sinthome” (1975–76), Lacan postula sobre a articulação do Real, Simbólico e Imaginário na construção singular de um aparelho psíquico. Para tanto, ele toma como exemplo o autor James Joyce em sua escrita complexa e muito difícil de ser compreendida por outras pessoas, mas que ao mesmo tempo o possibilitou não entrar em um surto psicótico e criar seu modo de estar no social. Clémence se torna escritora justamente no momento em que está rompendo com o esperado social, principalmente o eurocentrado. Aqui, o quanto da escrita dela foi o que deu base de sustentação para que continuasse nas mudanças subjetivas e objetivas?

Uma autora que pode ajudar a uma psicanálise da obra é a filósofa italiana Silvia Federici, que em “Calibã e as Bruxas”, “Caça às Bruxas e o Capital”, “O Ponto Zero da Revolução” e “Além da Pele” explora o papel da mulher ao longo dos séculos. A autora dá um enfoque na história e constituição da mulher eurocentrada que, desde a Idade Média, foi marcada por ideais católicos, pressupostos do que seria uma “boa esposa”, “uma boa dona do lar”, “uma boa cuidadora” e destituída de uma sexualidade que estivesse alinhada ao seu prazer e não à reprodução.

Silvia enfatiza a figura da bruxa como aquela mulher que detinha saberes de cura, saberes advindos de geração, que infringia as “regras de Deus”, que usufruía de sua sexualidade e por isso deveria ser punida de modo a funcionar de exemplo para o restante da sociedade.

Clémence, nossa protagonista de “Me Ame com Ternura”, é punida por sair do que se espera de uma mulher ideal. Quanto mais ela se distancia da ideia de uma mulher que pode ser comparada a todas as outras, que pode estar dentro de um conjunto ideal, que tem sua sexualidade, caminho profissional e amoroso amarrado ao ideário, mais ela é punida.

A punição dela é o resultado de séculos de opressão da mulher. Aqui temos a violência não só dos personagens, mas como do estado maior, em que até o sistema judiciário a aparta do filho por mais de dois anos e prevarica constantemente do que seria sua responsabilidade com a justiça. O estado quer que a bruxa queime.

Imagem de divulgação do filme “Me Ame Com Ternura”

A psicanalista Vera Iaconelli, em sua obra “Manifesto antimaterialista”, vai na linha de filmes como “A Filha Perdida” (obra inspirada no livro de nome homônimo de Elena Ferrante), do filme “Tully”, “Como Nossos Pais” e “Quarto de Jack”, colocando em questão a romantização da maternidade como um sintoma social, que acarreta a destruição de parte da possibilidade de as mulheres serem enquanto singularidade.

Segundo Iaconelli, uma mulher haveria de poder escolher se quer ou não ser mãe, mas para que determinada escolha seja realizada, ela precisa de um certo afastamento da alienação do ideal social, que ao longo das décadas constituiu como identidade da mulher o papel de mãe.

Poder ser feliz ainda que não seja mãe, poder escolher não ser mãe, poder ser mãe de outros modos, poder analisar a maternidade como transmissão de uma cadeia que começou antes de nós e irá muito além, segundo a autora, é poder retomar as bases do conceito de transmissão. Questionar se a geração e criação de filhos precisa ser no modelo europeu e o que leva ao fato de que ela precisa existir nesses modos parece ser caminhos que tanto a psicanalista brasileira busca respostas como também Anna e Constance.

Imagem de divulgação do filme “Me Ame Com Ternura”

Isso é bastante explorado no filme, pois, em cenas de água e sol, vamos acompanhando Clémence em sua jornada de culpa, raiva, dor, angústia e, enfim, contentamento de ser ela independente da maternidade e seus destinos.

Por fim, e não menos importante, o psicanalista Christian Dunker, em sua obra “A Reinvenção da Intimidade”, argumenta sobre a dinâmica dos divórcios. Boa parte do sofrimento de Clémence advém das atitudes de seu ex-marido. Que no divórcio se posiciona na direção de destruir a ex-companheira (mesmo que para isso precise causar sofrimento ao filho). Dunker retoma os escritos psicanalíticos da alienação (Lacan) para apontar como, em uma separação, não se sabe com exatidão o que se perde, que o processo de afastamento do antigo cônjuge convoca o sujeito para um estado de redescobrir seus próprios limites. “Onde sou eu, e onde era o outro que aqui já não mais?”.

Imagem de divulgação do filme “Me Ame Com Ternura”

Uma das saídas, e talvez a menos elaborada, para o divórcio é a construção de uma agressividade e uma culpabilização do outro por uma separação — mesmo que se quisesse essa separação. Nessa saída o sujeito se desresponsabiliza sobre qualquer parte que tenha na história pregressa e a ex-companheira é tomada como destino final de toda agressividade, que no fundo é uma medida defensiva do sujeito a responsabilizar.

Filme visto na abertura do Festival Mix Brasil e que proclama a atenção do expectador para diferentes modos de ser mulher, de ser mãe, de amar, ser amada e expressar a sexualidade. O longa se apresenta como um ótimo retrato do período histórico, das buscas por liberdade, por identidade, da violência ao diferente, do autoritarismo, do direito como arma e de um amor que leva em consideração o desejo que não abre mão de se inscrever.

Ele terá uma última exibição no dia 17/11, no Reserva Cultural da Paulista, às 21h. Com ingressos populares, a venda deve esgotar rapidamente. No Brasil o filme conta com a distribuição da Imovision, que além de ser uma distribuidora de filmes independentes ela também conta com uma plataforma de assinatura, o Reserva Imovision, nela há uma curadoria bastante interessante de filmes premiados ao redor dos melhores festivais de cinema do mundo, além de muitos clássicos cults que todo fã de cinema deve amar, vale a pena dar uma olhada.

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