“Os Anos” de Annie Ernaux
“Os anos” é um dos melhores livros da escritora francesa Annie Ernaux — vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2022. Ele é, ao mesmo tempo, uma biografia de uma mulher, de uma geração, de uma sociedade e de um país — a França. A primeira edição francesa é de 2008. Já a versão brasileira saiu apenas em 2021 pela Editora Fósforo, responsável pela publicação de suas principais obras.
Outros títulos de destaque — que também estão disponíveis no Brasil — incluem: “O Lugar“, “A Vergonha” e “O Acontecimento“. Em cada um deles, conhecemos uma parte diferente da vida de Ernaux, que conecta com a outra e, dessa maneira, vai montando o seu próprio quebra-cabeça. Todos estes livros citados são curtos e tratam de acontecimentos específicos em períodos bem delimitados da vida de Annie, como o aborto que fez quando ainda era uma estudante na faculdade e a morte do seu pai — quando já era uma adulta prestes a se tornar uma professora. “Os anos” tem uma abrangência temporal muito maior e não é focado apenas na figura da autora. Annie Ernaux cria um sujeito coletivo para contar sua história e a história das pessoas (e também dos objetos) que vieram antes dela.
Com este objetivo em mente, ela deixa de lado a narração em primeira pessoa do singular e constrói um outro tipo de narrador — alguém que personifica esse sujeito coletivo que passou pelos mesmos acontecimentos que ela. A narradora se refere à própria Annie como uma “outra”, como “ela”. Os anos narrados nesta obra estão entre os anos 40 (data em que Ernaux nasceu) e os anos 2000 (quando ela terminou de escrever este trabalho). O coletivo e o pessoal se misturam nos acontecimentos narrados, assim como é recorrente na maioria de seus trabalhos.
Os eventos históricos impactam diretamente na vida das pessoas — tanto no plano material quanto no plano ideológico. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Guerra da Argélia (1954-1962), a Guerra do Vietnã, Maio de 68, 11 de Setembro e seus efeitos são alguns dos eventos relatados neste trabalho.

Annie age como uma historiadora de costumes, gestos, palavras e imagens. Com esse fim em questão, a autora começa o livro descrevendo diversas imagens que parecem aleatórias, mas que, no decorrer do livro, farão sentido porque se relacionarão com certos acontecimentos-chave de sua existência e da própria humanidade (que é observada sob uma perspectiva francófona, europeia). Este começo é um pouco maçante, mas o leitor pode insistir na leitura porque a experiência melhorará muito depois. A francesa quer preservar tudo isso, mesmo que saiba que o destino de toda imagem é perecer. Muitas vezes, ela fala de uma determinada época a partir de uma fotografia (como as que estampam as capas de todas as suas obras publicadas no Brasil), começa a descrevê-la para depois entrar de fato no retrato daquele período — uma atenção à materialidade que depois se desloca para a subjetividade. A ferramenta de combate escolhida contra o esquecimento é a escrita, a qual usa com maestria. Sua abordagem literária é distanciada e sem muitos adjetivos, mas potente assim mesmo, e acaba ressoando fundo até em pessoas que não tiveram a mesma criação de uma pessoa do interior da França como a autora.
Como ela mesma descreve no final desta obra, seu objetivo é criar uma autobiografia impessoal; e ela consegue muito bem alcançar isto. Em entrevistas, Annie rejeita a classificação de “autoficção”, que é comumente associada ao seu estilo de escrita. A ganhadora do Nobel prefere a classificação de “autossociobiografia” e este termo realmente sintetiza o conteúdo de seus livros, que têm um forte viés biográfico e sociológico ao mesmo tempo, mas também têm um trato especial com a linguagem que hipnotiza o leitor.
Ernaux veio ao Brasil para a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) em 2022. Outros compatriotas franceses contemporâneos e que também costumam ser rotulados como “autoficção”, como Didier Eribon e Édouard Louis — autor que também é um fenômeno literário internacional e já veio para a FLIP em 2024 —, devem muito ao estilo e às temáticas de Annie Ernaux. Sua influência e importância na literatura atual são reforçadas a cada dia.
Os melhores elementos de toda a obra literária de Annie Ernaux estão em “Os Anos”. Ela radicaliza o que faz nas obras anteriores: mistura sua história pessoal com reflexões políticas para contar uma história que diz algo sobre ela mesma e também sobre esse “nós” que nos compõe. O número de páginas é bem superior ao de costume — alguns de seus livros não chegam nem a 90 páginas, mas esta edição da Fósforo tem 224. Este livro é como uma biografia coletiva da humanidade — um registro histórico de mudanças geracionais que atravessaram a vida de milhões de pessoas. A história é escrita sempre no plural e não apenas no singular. Ernaux nos lembra isto.
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