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Itamar Vieira Junior recoloca o Brasil no divã em “Coração sem medo”

O romance não apenas revisita a escravidão e o patriarcado, mas convoca a psicanálise para entender o trauma histórico que aprisiona o país em uma repetição que impede novos futuros

O retorno da história

O novo romance de Itamar Vieira Júnior, Coração sem medo, recoloca o Brasil no divã. Rita Preta, personagem central, repete no âmago a história de outras mulheres de sua família. Sua avó, Carmelita, fugiu da casa materna para nunca mais voltar e Donana, sua bisavó, também criou seus filhos como mãe solo, embora por motivos diferentes. Rita Preta é uma caixa de supermercado que cria três filhos sozinha e que viveu sem conhecer o pai, foi abandona pela mãe, perdeu seus irmãos e foi mandada pela avó para trabalhar na cidade como empregada em casa de família.

Cid – cujo nome verdadeiro é Alcides Alves das Virgens, o primogênito de Rita Preta, desapareceu como também um dia desapareceu Zeca Chapéu Grande, seu ancestral, em Torto Arado, e filho mais velho de Donana. Indo mais além, retoma, pelo sobrenome paterno, um antepassado histórico, Luiz Gonzaga das Virgens, que foi enforcado e esquartejado em Salvador, Bahia, em 8 de novembro de 1799.  A narrativa mostra, na verdade, como a história da família de Rita Preta se entrelaça à própria história do Brasil, revelando que não há destino individual que não esteja marcado pela trama coletiva.

Capa de "Coração sem medo", novo livro de Itamar Vieira Junior
Capa de “Coração sem medo”, novo livro de Itamar Vieira Junior

O destino é um outro nome da repetição

Aurora Bernadini, crítica literária, tradutora e professora aposentada da Universidade de São Paulo, afirmou recentemente, em entrevista à Folha de São Paulo, de 30 de agosto de 2025, que a escravidão não deveria continuar servindo de mote à literatura contemporânea, pois o passado não poderia repercutir no presente. Sigmund Freud, porém, em seu ensaio Além do princípio do prazer, de 1920, já afirmava que ninguém escapa da compulsão à repetição — essa força que atua no psiquismo humano, também conhecida como pulsão de morte. Essa repetição se traduz em uma tendência à mesmice, à inércia e, no final das contas, à morte. Somos feitos de histórias: da família, da comunidade, da sociedade. E repetimos, inconscientemente, roteiros bons e ruins dessas histórias que nos antecedem. Essa lógica não se aplica apenas às pessoas, mas também as sociedades.

A esse tipo repetição, o psicanalista francês Jacques Lacan chama de repetição idiota – no sentido de idêntico a si mesmo, repetição do mesmo. Freud já indicava, desde 1914, que uma das maneiras de romper o circuito mortífero da repetição do mesmo é contar, recontar e, por fim, elaborar nossas histórias, aquelas que causa dor e sofrimento. A psicanálise nos ensina que revisitar o passado é condição para narrá-lo de outras formas, abrindo espaço, como ensina explica Jorge Forbes, para versões diferentes, mais favoráveis à vida. Mas esse processo só produz efeitos se houver quem escute, valide e ofereça condições para que essas novas narrativas possam surgir. Sem um ouvido atento e interessado, dificilmente alguém encontrará meios de ressignificar sua trajetória e superar impasses e sofrimentos.

A herança escravocrata e patriarcal

Rita Preta e seus três filhos são metáfora de muitas famílias brasileiras que ainda lutam contra a força da herança da escravidão e do patriarcado — traumas que o país não elaborou suficientemente. Enquanto não trabalharmos suficientemente essas páginas de nossa história, não encontraremos lucidez necessária para construção de outras histórias possíveis e mais interessantes, sobretudo para pessoas negras, mulheres, crianças e adolescentes, ainda tão maltratados em nosso Brasil. Histórias invisibilizadas precisam ser ouvidas e legitimadas, para que possam abrir possibilidades de ressignificação e futuros a se inventar – bons e justos para todos.

Itamar Vieira Júnior, com Coração sem medo, nos convoca, como já o fizeram outros grandes escritores e escritoras, a essa escuta. Que tenhamos coragem para falar dessas temáticas com honestidade, livremente e sem censura — única regra que Freud estabeleceu para que uma psicanálise produzisse efeito. Que a leitura e as discussões em torno de Coração sem medo sejam, de fato, experiências transformadoras para os(as) leitores(as) e para o Brasil.

Francisco Neto Pereira Pinto é Escritor e Psicanalista. Doutor em Letras, é Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal do Norte do Tocantins. Autor de À beira do Araguaia.  

Francisco Neto Pereira Pinto (Foto: Railander)

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