Livros

“Mudar: método” — Édouard Louis e a escritura acidental

O romance destaca, entre outros motes caros ao autor, a casualidade de uma escrita que nasce com o propósito de relatar

Mudar: método

Mudar: método” [Changer: méthode, 2021] (2024), do autor francês Édouard Louis, entra no rol dos romances autobiográficos, tendência em ascensão na literatura mundial, com uma proposta subversiva: o que fazer para se tornar o que não se é? Como alcançar esse espaço que, por via de regra, pertence ao outro?  

A obra, traduzida para o português por Marília Scalzo e publicada no Brasil pela Editora Todavia em 2024, trouxe destaque ao escritor que já tinha no país outros livros renomados: “Lutas e metamorfoses de uma mulher” (2023) e “Quem matou meu pai” (2023), ambos pela mesma editora. 

Capa de “Mudar: método”, de Édouard Louis (Editora Todavia, 2024)

O ímpeto narrativo de Louis, sua maior arma ficcional, se apoia nos eventos familiares para traçar um panorama da autoanálise. A escritura, para ele, é a descoberta de si e do mundo; um mundo mediatizado pelo desejo e pelas tensões, dentre as quais se destacam os tensionamentos de classe — ponto focal para o autor — e o impasse entre o fugir e o ficar, como ele próprio reitera: “No meu primeiro livro [Para acabar de vez com Eddy Bellegueule, Elsinore, 2022, reeditado pela Todavia] contei como tinha feito de tudo para não fugir, para não ser diferente. As duas histórias são verdadeiras, contam simplesmente as duas faces de um mesmo fenômeno, de uma mesma vida”. Fugir e ficar são, no balanço da vida, duas faces de uma mesma moeda; Édouard descobre que, nos dois casos, é obrigado a carregar consigo as memórias que o compõem. 

Com o objetivo de esboçar um panorama do vivido, a prática ficcional é utilizada — de modo que parece diretamente influenciado por Didier Eribon, autor basilar no espectro da autoficção — como uma forma de expor duplicidades: não tanto devido à paixão do autor pela literatura, mas porque suas vivências precisam ser ditas e vistas; porque a literatura é uma forma de externalização e meditação do ser. Através das páginas, Louis descobre (ou redescobre, se preferirmos) o porquê de “Eddy falar assim, igual a uma menina, mesmo sendo menino”: nesse mosaico de uma vida toda, suas influências, medos e desejos são definitivos em suas decisões e — como ele mesmo demonstra — no caminho percorrido. 

Édouard Louis, em decorrência do fenômeno editorial de seu livro “Mudar: método”, participou de uma entrevista para a TV Cultura no programa Roda Viva, no dia 21 de outubro de 2024. Na ocasião, Louis confessou: “Quando eu era pobre, quando os meninos cuspiam em mim na escola e me chamavam de bicha, eu pensava: um dia eu vou contar essa história”. O autor destaca, ao longo de sua produção, que escrever é uma forma de dar ao mundo a sua versão da história — de seus sofrimentos e de como isso o constituiu enquanto sujeito. Escrever é “aprender um novo corpo”: lidar com as “presenças negativas” que lhe cercam e, mais do que isso, dizimar o Desejo, que se não é paralisante, pelo menos trabalha para o alcance de um horizonte na linha do impossível. 

Destaca-se, ao longo de “Mudar: método“, a imagem do esforço: ser e existir só são atos possíveis mediante um esforço de concentração, de observação e de método. Existir, para Louis, é observar e adquirir para si (em uma deglutição dos hábitos) as atitudes que, para os outros, ricos, elegantes e permeados de capital cultural, são naturais e de berço. 

Ao lado disso, a questão da homossexualidade se impõe como ato contínuo e motivo de sua escritura; ser gay, aceitar e entender o corpo é uma dificuldade, que também se traduz como vontade de “contar” o que seria para ele um segredo: “Você não precisa disso, você conseguiu viver todos esses anos em segredo”. A transgressão sexual aí se apresenta como transgressão das barreiras de um mundo até então muito bem estabelecido: as paredes da casa do pai, um ambiente rural e familiar, “gostar de meninas”. Tudo isso poderia ser quebrado pelo que se era considerado total infâmia. 

O livro, recheado de citações e referências culturais a outros autores (muitos deles também homossexuais) e filósofos, como Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Jean Genet e o já citado Didier Eribon, deixa-se estar no plano do não saber e do não fazer: tudo é muito longe, muito distante e é “tarde demais”. Até mesmo para a matéria literária, é tarde demais. Por não se enxergar como escritor propriamente, trata a literatura como “coisa” de segunda importância, como meio e não como fim. Diz, em dado momento: “Não se deve enxergar no que escrevo a história do nascimento de um escritor, mas a do nascimento de uma liberdade, do desenraizamento, custasse o que custasse, de um passado odiado”. O que o autor parece deixar de lado é a própria potência transformadora da literatura, que o auxilia em seu processo de “metamorfose”. Não apenas a literatura o guia — mesmo que ele a enxergue apenas como instrumento — para fora do mundo do qual desejava sair como também lhe oferece uma infinita gama de possibilidades. 

No mapeamento preciso dos tensionamentos que fazem parte de uma vida intrincadamente complexa, Louis é ele mesmo responsável por diminuir o valor da literatura que produz. 

Siga A Pista em todas as redes sociais (InstagramTwitter e Facebook) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, séries e música!

Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.

Leia também:

1 comentário

Deixe uma resposta