Livros

A Pista Entrevista: Yuna Machado e Rocío Crey

Fazendo referências a uma obra fundamental do teatro surrealista espanhol, "O Público", Nelson Ansiporovich, dramaturgo argentino, escreveu "Torres Gêmeas – Dramaturgia com o destino", que em muitos aspectos dialoga com o teatro do absurdo e toda uma corrente teórica do existencialismo

No centro de um dos bairros mais efervescentes e culturais de São Paulo, o Bixiga (embora com a elitização de grande parte do centro expandido, agora a região também passou a fazer parte da Bela Vista), está o Sol y Sombra, um espaço cultural, político e culinário, que levanta a bandeira da América Latina como uma entidade coletiva e, indo muito na linha de propostas decoloniais, seus curadores e donos parecem entender que a suposta singularidade dos países latinos é uma armadilha colonial, e que nossa verdadeira unidade reside na diversidade não homogeneizada, nas raízes indígenas sufocadas, nas culturas africanas resistentes e nos fluxos migratórios que nos moldaram enquanto região.

Foi neste local, que fica no endereço R. Treze de Maio, 180, em que A Pista assistiu “Torres Gêmeas“, peça inédita no Brasil, que já passou por Buenos Aires, Mar del Plata, Córdoba, Patagônia Argentina, Nova York e Barcelona, e pode acompanhar de perto este espetáculo que é uma tragédia musical participativa em que se investiga o que Nelson Ansiporovich, criador do texto, denominou de “terrorismo existencial“. O espetáculo se dá a partir de um embate permanente entre realidade e ficção encarnado em corpo, música e luz. 

Foto de divulgação Torres Gêmeas
Foto de divulgação Torres Gêmeas

Se para Albert Camus o existencialismo girava muito mais a partir da ideia de que a vida é absurda e sem sentido, mas que, entretanto, os indivíduos tinham liberdade e poderiam se responsabilizar para criar seus próprios significados, e para Samuel Beckett e o seu teatro do absurdo, o existencialismo estaria em uma angústia profunda com a existência, em que não se procuram respostas definitivas, mas sim se propõe uma reflexão sobre a condição humana, Nelson Ansiporovich parece juntar as duas coisas em sua peça.

A filosofia existencialista se divide em duas vertentes: o existencialismo ateísta, de Sartre, que nega a existência de Deus; e o existencialismo cristão, de Kierkegaard, que enxerga na fé um salto necessário para a realização humana. Apesar de levarem para caminhos opostos, ambos enxergam a angústia e o desespero como uma força mobilizadora e, assim como Camus, entendiam a liberdade como condição humana fundamental, e que uma busca pela autenticidade de seus próprios valores e responsabilização levaria ao sofrimento substancial.

Assim, quando o dramaturgo argentino propõe que o público participe de forma ativa ou como cúmplice de sua peça, está colocando em xeque justamente o jogo de ação e reação social diante do absurdo da sociedade. Com Beckett, a peça parece dialogar com o tom político e reflexivo da miséria humana no pós-Segunda Guerra Mundial e da possível e imanente guerra nuclear que poderia se desenrolar durante a Guerra Fria, como também com a ideia de que o público é parte integrante do texto teatral. Se em “Esperando Godot” a “tragédia” não está somente no absurdo da existência sem utilidade, que de forma cíclica se repete sem solução, em que os personagens estão presos a uma dinâmica de futuro que nunca chega, com Camus, a peça evidencia, por meio de mais de vinte personagens em ação, que o trágico, para quem consegue chegar aonde o autor quer nos levar, se encontra principalmente na tomada de consciência por parte do público da condição absurda de que, apesar de termos liberdade, muitas vezes ela é uma liberdade mecânica, voltada para a espera, e a peça que provoca para que sejamos agentes dentro da narrativa nem sempre nos levará a agir.

A peça parte da ideia de um jogo em que, dividido em dois atos, primeiro você encena você mesmo e depois, no aniversário de Fernando, você encena uma nova identidade. A partir dessa premissa, tudo pode ocorrer no aniversário, afinal ninguém está falando a verdade. O objetivo inicial, que era montar duas torres gêmeas para mostrar o equilíbrio social e o trabalho em equipe, logo se mostra impossível, diante das individualidades e da própria natureza humana.

Martin Esslin, crítico literário húngaro, fala que o teatro do absurdo, em última instância, não provoca lágrimas de desespero, mas sim o riso da libertação, e “Torres Gêmeas” é um pouco disso, é provocativo, sensual, atual, desafiador e instigante. Dialoga com todas essas correntes teóricas, críticas e literárias, mas é original e reflexiva; para quem se joga na experiência, pode ser um tanto divertido e perturbador ao mesmo tempo. Vá preparado porque, para muito além de um texto teatral, você vai encontrar uma experiência imersiva sobre nossos jogos de poderes, sobre nossa política institucional, sobre nossos embates de classe e de gênero, que foram muito bem adaptados para o contexto brasileiro por Yuna Machado e Rocío Crey, diretoras da peça nessa temporada no Brasil.

Foto Izaque Rodrigues - Torres Gêmeas
Foto Izaque Rodrigues – Torres Gêmeas

Sobre todos esses aspectos, entrevistamos as diretoras da peça. Seguem algumas das perguntas e respostas levantadas pela nossa equipe:

A Pista: Que noite fantástica, é a segunda apresentação da peça no Brasil e a casa estava cheia. Vocês estão com mais duas datas programadas para este mesmo local, 05/12/2025 e 11/12/2025, certo? E a peça parece bastante provocativa, dialogando com toda uma corrente teórica do teatro do absurdo e do existencialismo. Como vocês veem a relação da peça com tudo isso?

Yuna Machado e Rocío Crey: Sim, estamos empolgadas com as próximas datas. Bem, é um terrorismo existencial, é uma experiência que busca quebrar a quarta parede do teatro (interação entre público e plateia, em que se busca um maior envolvimento emocional com a história e os personagens, mas ainda imaginando-se uma parede invisível que separa quem atua de quem assiste). Ela é uma peça que passa pelo corpo e que provoca; assim, o público é instigado a participar. Acho que a gente sempre tenta participar na sociedade e na vida de alguma maneira. E pode estar bem e pode estar mal, mas a gente tenta. A gente fala muito que a peça é a dramaturgia com destino. Porque a gente nunca sabe o que vai acontecer. Apesar de a gente falar sobre solidão, amor, a vida. Porque dentro dessa peça acontecem muitas coisas. Que talvez pode acontecer num dia, numa semana, num ano, mas está tudo aqui dentro; de alguma forma estamos falando sobre a existência e o absurdo que é lidar com tudo isso.

A Pista: Em alguns momentos da peça pensamos em participar por meio do espelho, achando que ele poderia fazer parte de forma mais direta por parte do público, se o público resolve participar de forma mais enfática desse ou de outros momentos da peça, vocês estão preparados?

Yuna Machado e Rocío Crey: Bem, foi uma maneira que vocês buscaram participar; o destino é imprevisível, porque o público participa ativamente disso. Então o destino é interessante porque você também percebe no espelho. O espelho é o reflexo. Representa o reflexo. Ou seja, representa cada um de nós. Se agimos e se não agimos, também não estamos agindo. Isso de agir e não agir tem muitas cenas, por exemplo, de violência na peça, que dialoga muito com temas recorrentes na sociedade contemporânea e que está acontecendo agora, nesse momento, e se o público conseguir se mexer, se ele participar nesse momento, nós fizemos um bom trabalho.

Foto Leonardo Wild - Torres Gêmeas
Foto Leonardo Wild – Torres Gêmeas

A Pista: Como foi fazer uma adaptação para o Brasil, levando em consideração o ar de mistério que a peça envolve e os baixos incentivos que existe aqui?

Yuna Machado e Rocío Crey: É uma peça que se faz há 10 anos em diferentes países do mundo, tem origem na Argentina; para o Brasil nós fizemos uma adaptação sociopolítico-cultural para conseguir trazê-la, então lá e em diferentes países com diferentes culturas também acontece que o público se mete a participar de diferentes jeitos. Às vezes para separar uma briga, às vezes para contribuir com alguma coisa. Sempre termina no espelho. E a equipe, no melhor dos casos, está bem preparada para isso acontecer. Na mesma peça também diz que quem não quiser mover nenhuma peça não tem por que fazê-la. É claro que a vontade de jogar é individual, mas saiba que essa será sua forma de participar e que terá influência sobre a quantidade de andares obtidos. Faz uma referência ao que acontece na sociedade também. Se eu estou assistindo, ouvindo alguma cena de violência, sei lá, pode ser qualquer outra coisa. Eu posso mover alguma peça ou não. Se eu não movo nenhuma peça, esse é o meu jeito de agir. E terá influência sobre a quantidade de andares obtidos. Então essa segunda torre, esse espelho, é esse reflexo de cada um de nós e o ar de mistério é um pouco sobre tentar preservar isso, faz parte do jogo de marketing, se você vai ter interesse em agir ou não, talvez você vai descobrir só assistindo, participando da peça.

A Pista: Foi difícil achar informações sobre a peça e vocês. Isso também se dá a esse fato do mistério e do marketing que vocês estão tentando criar para chamar mais pessoas?

Yuna Machado e Rocío Crey: Também é parte do jogo do marketing. Vender ela como uma festa. Porque a peça é uma crítica à festa mesmo e também é uma crítica justamente a este capitalismo. Este mundo atual em que todos estamos submergidos. Alguns mais, outros menos, mas que de alguma forma estamos começando a trilhar nosso caminho no Brasil.

Serviço: Para as próximas datas, 5/12 e 11/12 os ingressos podem ser adquiridos aqui.

Siga A Pista em todas as redes sociais (InstagramTwitter e Facebook) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, séries e música!

Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.

Leia também:

1 comentário

  1. Tive o prazer e a perplexidade de viver essa experiência. O absurdo toma a plateia de vários modos, sem aviso o rumo de qualquer narrativa muda de modo drástico e sem qualquer concessão para a plateia, não poupam de nada.

    Me tomou esse “torpor” entre aqueles que assistem e os que “atuam”. São tantos atores no meio do “público”, e em tantos momentos a “plateia” (lotada de atores) paralisa (e não atuam). 

    A peça abre com o aviso que não fazer nada é também uma forma de participar. – Participamos congelados diante do absurdo do dia a dia, da psicopatologia e caos do cotiadiano(?) 

    Curtir

Deixe uma resposta