Aparece, em 1982, em Lisboa, o “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa — essa obra de arte inacabada e com ares de fragmentariedade: um eterno recomeço fadado à não completude; se para compreender a gênese geral do mundo ou, ao menos, da criação: isso ninguém sabe e nem poderá saber.
No Brasil, o livro é constantemente revisto e atualizado por um de seus melhores compiladores, Richard Zenith. A edição de 2023 ganhou, ainda, um posfácio inédito da pesquisadora Leyla Perrone-Moisés, já há longos anos enveredada no caminho pessoano (cf. “Aquém do eu, além do outro“, 1990). O livro de Perrone-Moisés é aberto com uma das mais belas frases sobre a obra pessoana: “Todo trabalho sobre Fernando Pessoa é uma indagação sobre a identidade. Este também o é, e desde as origens”. Esse texto, bem como o próprio “Livro do Desassossego”, também o é. O que está em jogo, a todo o momento, além da ausência presentificada, é a questão do eu: quem sou Eu? Ou melhor — o que é esse Eu, de que tanto me falam?
Entrar em contato com o desassossego ao redor é também ficar desassossegado com tudo aquilo que nos cerca; e não há saída. A saída, para Pessoa, é sair de Soares e cair em alguns outros heterônimos e lugares, que talvez não o levem a pensar na gênese do mundo e na gênese do Eu — todo esse trabalho torna-se, desse modo, uma amálgama furiosa, à procura das causas todas.
Na adolescência, o autor já havia demonstrado seu poderio de multiplicidade com o conto “A hora do diabo”. Publicada no Brasil pela editora Bestiário dentro da coletânea “A hora do diabo e outros contos”, em 2015, a obra traz à luz esse nascimento às avessas, escurecido pelo tempo e que, a mim, pelo menos, parece dar uma nova face à sua fase satânica. O conto nasceu sob o título “Satan’s Soliloquy” e foi, de fato, metamorfoseado em conto sob o título de “Devil’s Voice” — esses dois títulos são ecos genéticos da importância que o discurso (antecipada nos termos solilóquio e voz) terá no conto — e passou, após a morte do autor, a integrar a coletânea “Tales of a Madman”. Apesar de sua forma em prosa, ainda são perceptíveis os resquícios do ritmo de poesia no texto, valendo-se também de diferentes figuras de linguagem e uma sintaxe simétrica própria do fazer poético.

O conto narra a história de Maria, uma mulher que, em um sonho vívido, tem um diálogo com o próprio Diabo, o qual não só é uma figura muito afeiçoada pelo poeta português, como é a figura proeminente de uma longa tradição literária satânica. O Diabo, invertendo o tema bíblico em que Jesus é tentado no deserto, tenta — ou seduz — Maria, a mãe, e o conto termina com um nascimento. Outra inversão bíblica mais central: a Santíssima Trindade agora é substituída pelo “pai, o marido, o filho”; a concepção milagrosa de Cristo é agora concepção diabólica.
Depois desse conto, centenas de outros poemas partiram da mão de Pessoa — talvez tão significativos (ou mais, caso se pondere) quanto esse primeiro; nada de especial há, a não ser essa tão forte procura pela gênese de si e da arte, que se aproveita dessas inversões e reversões bíblicas que viriam a ser centrais para sua escritura. Lá, em Maria, já se vê o pensamento mais tarde reiterado em alguns pontos do fragmento 39 do “Livro do Desassossego”:
“Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê. É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo”.
O visto e o vivido se separam e separam aquele sobre o qual seus poderes se investem. Ser Fernando Pessoa ou ler Fernando Pessoa é ser, naturalmente, um cindido — “sujeito em crise de identidade, poeta em crise de língua, gênio poético acuado num país que atravessava ele mesmo uma crise política e econômica, Pessoa era demais” diz Perrone-Moisés, à página 11 de seu já referido livro. Basta considerar que também somos nós os sujeitos em crise de identidade e os poetas em crise de língua; talvez não tão gênios assim, mas definitivamente uns fragmentos de ideia. Assim, lê-se Pessoa não para achar o caminho (se é que existe), mas para perder-se cada vez mais; e encontrar no não saber o proveito do viver.
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