Em seu novo filme “Valor Sentimental (2025), o diretor Joachim Trier consegue mais uma vez entregar um trabalho extremamente sensível, que pesa em certos sentimentos, mas que encontra seu ponto máximo nas relações familiares, o que me leva a lembrar de outra grande obra que nasceu como um clássico natalino, “Os Rejeitados” (2023), em que três personagens constituem, por um breve período de tempo, uma família de rejeitados pela vida. No pequeno espaço de tempo das férias de fim de ano, o núcleo de ambos os filmes terá que confiar uns nos outros, para então criar intimidade a fim de compartilhar o que lhes é questão e reconstituir aquilo que foi traumático e ficou por muito tempo guardado. O problema é que, de certa maneira, todos estão quebrados intimamente por algo que aos poucos vamos descobrindo e montando um quebra-cabeça, que passa muito pelo ressentimento. Ambos trabalham com o tema da solidão, das relações familiares, do luto e, acima de tudo, do que é ser em uma sociedade hoje extremamente alienante.

Joachim Trier demora para entregar um trabalho novo, bem diferente do acelerado e controverso primo distante, Lars Von Trier, que inclusive tem um trabalho temático com filmes também, como a chamada trilogia da depressão, que catapultou o cineasta escandinavo a um dos mais celebrados dos últimos tempos. Até 2018 ele vinha fazendo filmes um atrás do outro. Já Joachim precisa de tempo, se Lars parece reconstruir os retalhos de uma sociedade doente, seu primo parece jogar para o público. É o público que vai decidir, criar uma narrativa, ser convidado a entrar de cabeça na psicologia de seus personagens e montar um quebra-cabeças do que quer que venha a ser seus filmes, que também já foram categorizados como trilogia de Oslo.
“Os Rejeitados”, do diretor Alexander Payne, se estabelece e começa de verdade a partir da narrativa de seus três personagens principais, que constituem naquele espaço e tempo uma família de rejeitados pela vida. É uma narrativa natalina que, em meio à ausência, à inquietude e à solidão, tenta encontrar beleza, transformando o comum em extraordinário.
O excelentíssimo Paul Giamatti, aqui no papel de um professor de civilizações antigas também chamado Paul e que é extremamente rabugento e odiado por colegas e alunos, fica com a inesperada tarefa de ser o tutor de cinco jovens que foram “largados” por suas famílias em um internato da alta classe social americana durante as férias de inverno e o que já parecia ser um péssimo “castigo” do destino para um momento de união familiar, como é o Natal e o Ano Novo, se torna mais desafiador ainda quando Angus Tully, o aluno rebelde, é o único que nenhum familiar atende aos telefonemas para autorizar uma viagem de última hora na mansão de um dos outros quatro jovens.
A partir daí a relação de Angus e Paul é mediada pela talentosíssima Da’ Vine, que, no papel de Mary Lamb, entregou uma das atuações mais poderosas de 2023. Quando ela estava em cena, sentimos o peso do seu silêncio e a dor do seu luto, em uma dicotomia com a necessidade de ser simpática e a responsabilidade de ser a única ali capaz de dar afeto, nem que seja por meio da comida.
Talvez ambos os filmes sejam um claro exemplo de que, para sermos donos da nossa própria história, invariavelmente é necessário antes olhar para o passado e nada melhor do que isso é olharmos para dentro de nós mesmos. A partir da literatura o diretor recorre, ao que chamamos de narrador onisciente, aquele que sabe de tudo e acompanha de cima o desenrolar da trama, sem participar dela, para evidenciar esses conflitos internos em busca do sentido da vida.

Em “A Pior Pessoa do Mundo” (2021), Joachim já tinha usado desse recurso e agora em “Valor Sentimental” leva a um outro patamar. Se no primeiro precisamos entender os motivos que levam Julie a constantes mudanças e a uma busca incessante pelo sentido da vida, no segundo ele parece querer explorar, com mais ênfase, a complexidade do ser humano, suas contradições, os sentimentos de culpa e remorso. Ele parece querer fazer um registro do real de uma família que tem muito a conversar, mas não sabe por onde começar e tem medo de onde vai parar.
“Valor sentimental” começa atrasado na corrida das grandes premiações e talvez seja um filme que precise do boca a boca para chegar em mais gente. Com as recentes listas da segunda quinzena de dezembro e os feriados chegando, talvez o filme ganhe mais força, mas já é aposta certa para algumas das principais categorias do Oscar, como, por exemplo, Elle Fanning como melhor atriz coadjuvante. O filme é também um dos grandes favoritos na categoria de melhor filme internacional e de diretor com Joachim Trier, além de melhor fotografia.
Nos filmes de Joachim não parece haver uma dicotomia entre o bem e o mal, entre heróis e vilões, vamos de forma gradual entendendo a complexidade do ser humano, suas contradições e que, muitas vezes, por perspectivas diferentes, podemos entender melhor que bem e mal são apenas adjetivos. Seus filmes de certa forma retratam o amadurecimento de seus personagens, suas idas e vindas ao longo de um percurso que os fez chegar em uma “x” situação. É por meio dessa “x” situação que considero se uma pessoa é má ou boa?
Se Drumond nos ensinou aqui no Brasil que amar se aprende amando, com Joachim parece que aprendemos a viver, vivendo. Seus filmes passam por temas sensíveis, como a morte, o suicídio, a insurgência feminina contra o patriarcado, a ideia de objetos que, quando guardam valor sentimental, não podem passar para outros donos, além de alguém da própria família.
“Valor Sentimental” parte da ideia universal de que todos temos conflitos internos, e que uma hora ou outra eles vão aparecer. No caso de Gustav, é como ele abriu mão de ser pai para criar a carreira de um prestigiado diretor de cinema. O filme entrega assim uma metalinguagem, em que tanto Agnes como Nora conheceram os bastidores do cinema, mas não conseguem mais nem conversar com o pai. Todos ali têm feridas do passado que ainda não foram totalmente tratadas.
A obra se destaca pelas boas atuações, pela reflexão sobre responsabilidade, amor e perdão e por uma encenação melancólica e simbólica, na qual o espaço e a fotografia reforçam as tensões emocionais. Assim, Trier consolida sua maturidade artística ao criar um drama sensível e profundo sobre vínculos familiares e a condição humana.
O filme ainda está chegando aos cinemas brasileiros; 25/12 é a data escolhida, uma curiosa coincidência ou um real planejamento? Afinal, o mundo todo vai estar pensando nas suas relações, sejam elas da ordem que forem.
Siga A Pista em todas as redes sociais (Instagram, Twitter e Facebook) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, séries e música!
Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.
Leia também:
https://apistajornal.com/2024/03/22/os-rejeitados-viagem-melancolica-anos-70/
https://apistajornal.com/2025/11/25/de-olho-no-oscar-2026-melhor-filme-internacional/

