Livros

O “Instinto de Nacionalidade” e uma das primeiras ideias do que é ser Brasileiro

Em "Notícia da Atual Literatura Brasileira" de 1873, com os prelúdios da proclamação da República, Machado de Assis já buscava entender o engendramento social do país, e um dos seus primeiros livros, "Iaiá Garcia", lançado em 1878, é uma prova disso

Muitos intelectuais brasileiros já tentaram defender uma tese sobre a nossa identidade, como, por exemplo, Gilberto Freyre, Sueli Carneiro, Paulo Freire, Antônio Cândido, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Lilia Schwarcz, Cristian Dunker, entre outros. Machado de Assis, muito mais conhecido pelos seus romances, tem um ensaio notável que antecede um dos seus livros menos conhecidos. No entanto, ele é fundamental para a análise de um país que ainda buscava caminhos para possuir uma arte literária desvencilhada dos vícios da Europa.

Fotografia de Machado de Assis de óculos, com o texto "Iaiá Garcia".
Capa editora Ases da literatura

No ensaio “Notícia da Atual Literatura Brasileira”, o autor defendia que, por parte tanto da crítica literária como por parte dos escritores de sua época, faltava-lhes um certo grau de instinto de nacionalidade, pois não encontrava o que ele chamava de romance de análise. Lembrando que Machado de Assis está escrevendo durante a passagem do século XIX para o século XX, ou seja, entre o romantismo e o realismo.

Esses romances de análise, de acordo com o autor, seriam mais propícios para a busca de um sentimento íntimo nacional, sendo que grande parte da burguesia brasileira de então já estava descontente com o império brasileiro e sua quase extensão da coroa portuguesa. Machado argumenta que há um certo valor na literatura nacional e que suas falhas se davam principalmente por ser principiante e engatinhar. Para ele, a nossa literatura deveria se desvencilhar do registro da cor local e da marcação de topos e temas unicamente nacionais.

Com este ensaio, parece que, ao falar de terceiros, também está falando de si em tom de autocrítica, pois busca com o ensaio um esquema que atesta a complexidade de sua obra. “Iaiá Garcia”, escrito primeiro em folhetim, depois reunido e publicado na forma de romance em 1878, é um livro que marca o final de sua primeira fase. O autor está marcando nas entrelinhas deste texto que capturou, por meio do texto literário, o engendramento social brasileiro do final do século XIX, mostrando que se tornou um homem de seu tempo e país.

Pintura com rosto de Machado de Assis

A obra evidencia as relações de classe do Brasil, em que, em uma sociedade escravocrata, o sistema de favores favorecia o desequilíbrio entre um passado colonial e um ideário libertário europeu, que promoveria também no Brasil a modernidade. Assim, em um profundo romance de análise em que sujeitos dão luz às relações que se estabelecem com a sociedade e às posições que ocupam no tecido social, Machado mostra o contraste das ideias, de um Brasil que busca ser moderno, mas é preso ao passado.

O sistema de favores, ponto por ponto, desloca e rebaixa as ideias de liberdade, pois mostra que os homens livres eram dependentes do sistema paternalista em vigência no país. Se escravos eram propriedades, agregados deviam aceitar o seu destino de dependência e imobilidade social; o trabalho assalariado não era uma opção para ascensão social, como defendia o ideário das revoluções europeias.

Estela e Jorge, protagonistas de “Iaiá Garcia”, seriam respectivamente a representação deste contraste. Estela, dependente de Valéria, entendeu antes de todos o jogo social necessário para sobreviver ao mecanismo de favores e fazer uma ruptura com seu destino. Ela, humilde e obscura, abdica do amor para com Jorge, que estaria acima de sua classe social, por ser filho de Valéria e, portanto, em uma relação de desequilíbrio, para tornar-se sujeito. Estela, diferente de Jorge, reconhece-se sujeito e sabe seu lugar no engendramento social e, por desejar subir de classe, precisa casar de forma arranjada antes que Jorge volte da guerra do Paraguai.

Portanto, “Iaiá Garcia” foi uma resposta de Machado à sua própria crítica em “Notícia da Atual Literatura Brasileira”, em que ele lê a sociedade brasileira ainda fortemente marcada pela escravidão e pelo sistema de favores.

Siga A Pista em todas as redes sociais (InstagramX e Facebooke não perca nenhum dos nossos textos sobre cinema, literatura, séries e música!

Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.

Leia também:

Deixe uma resposta