Música

A importância do sample e do vinil para a cultura hip-hop

A compreensão do papel do vinil e do sample é essencial para o conhecimento da história do hip-hop

Matéria originalmente publicada na revista Hey Rap! em 2016

Dentro da loja Casa Brasilis (Foto: Bruno Henrique)

A Resistência da Cultura do Vinil

Atualmente vemos muitas matérias na mídia em geral sobre o suposto retorno do vinil. Para Ramiro, DJ, jornalista e criador do site Radiola Urbana, não faz sentido falar da volta do vinil, mas sim de sua manutenção. O vinil nunca foi abandonado por DJs e membros da cena do rap, ele é uma parte essencial da cultura.

Para KL Jay, produtor e DJ dos Racionais Mc’s, “O Hip Hop nunca abandonou o vinil porque ele faz parte da matéria-prima, faz parte da essência da história do Hip Hop”. O vinil tem presença constante nas festas de rap e quando manipulado pelo DJ nos toca-discos também se torna em um instrumento musical. “O toca disco é o instrumento musical do DJ, então o vinil é indispensável”, comenta DJ Ajamu, que discoteca desde os 14 anos e hoje tem 40.

A diferença do som do vinil para outros tipos de mídia é nítida, a qualidade do vinil é muito melhor: “A agulha do disco consegue captar um som mais completo, mais puro. Já num som digital, esse som é mais comprimido onde não se consegue captar certos detalhes da música”, explica Ajamu.

Para Ramiro, o vinil é o tipo de mídia que mais valoriza a música. “O vinil nunca morreu, quem tá morrendo agora é o CD. Porque várias coisas que o CD prometia lá no final dos anos 90 de que era uma mídia mais duradoura, tinha uma qualidade de som melhor, tudo isso veio a ser desmentido depois”. As únicas vantagens que o CD tem em relação ao vinil é que ele é menor e ocupa menos espaço, argumenta o jornalista.

Relação Sample e Vinil

A compreensão do papel do vinil e do sample é essencial para o conhecimento da história do hip-hop. O movimento não seria o mesmo sem esses dois elementos.

O que é o sample?

A tradução literal de “sample” significa “amostra”. Podemos explicá-lo como sendo um recorte ou uma colagem. Por exemplo: um produtor ouve uma parte de um som que gosta em determinada música e decide recortar só aquele trecho da música para construir outra composição (como em “Homem na Estrada”, do Racionais MC’s, que sampleou “Ela Partiu”, do Tim Maia).

Quase todos os discos de rap utilizam sample de alguma outra música. Os anos 90, por exemplo, ficaram marcados por samples de músicas do James Brown, principalmente a bateria, os gritos estridentes do padrinho do soul/funk, além de diversos outros elementos. Quando você está escutando um rap dos anos 90, há uma grande chance de que você está ouvindo também uma música do James Brown.

Beat Brasilis

O Beat Brasilis é um evento que ilustra muito bem a conexão presente entre o sample e o vinil na cultura hip-hop. Ele acontece desde setembro de 2014 na Casa Brasilis (loja de discos de vinil) e hoje funciona como um ponto de encontro e troca de experiência e aprendizado entre beatmakers e produtores de todo Brasil.

Casa Brasilis (Foto: Bruno Henrique)

“A ideia surgiu meio sem querer”, conta Rafa Jazz, 29, beatmaker e uma das sócias da casa. Cabeça, um beatmaker de Curitiba, veio pra São Paulo fazer um show com sua MPC. DJ Marco e DJ Niggaz, que também tinham uma MPC, combinaram de se encontrar com o Cabeça para esclarecer algumas dúvidas e esse foi o primeiro Beat Brasilis não-oficial. Os envolvidos gostaram tanto da experiência que resolveram continuar. A partir daí o movimento só foi crescendo, com pelo menos 12 produtores em cada edição.

O sample no Beat Brasilis é feito direto do vinil. “Quando você põe a agulha ali e capta direto do vinil, você capta com muito mais frequências, com muito mais corpo o som, então o vinil tem muito mais profundidade”, comenta DJ Niggaz, beatmaker e sócio da loja.

O processo de samplear no Beat Brasilis é o seguinte: a primeira pessoa a chegar seleciona 5 discos da loja e a segunda faz uma seleção a partir desses 5, daí cria-se uma lista com o nome dos participantes e cada um tem 10 minutos pra samplear.

A cena de produtores do Beat Brasilis ainda é pequena se comparada à quantidade de beatmakers existente em São Paulo e no Brasil em geral.

“A gente reuniu uma cena que era muito espalhada, cada um no [seu] canto fazendo o seu e ninguém se conectando muito pra trocar informação, trocar ideia. Acho que esse é o ponto mais importante do Beat Brasilis. Virou um ponto de encontro dos beatmakers e dos produtores. Apesar de ter uma galera, ainda são poucos comparado ao número de produtores que tem no rap, no hip-hop, de DJ, de MC. É meio que uma coisa que ainda tem pouco justamente pela falta de informação, falta de equipamento. Acho que o mais importante do Beat Brasilis é reunir essa galera, fazer esse intercâmbio de ideia e informação”, comenta DJ Formiga, 32, beatmaker, discotecário há 16 anos e participante frequente das edições do Beat Brasilis.

Caio Formiga é um desses produtores que não tem preferência de gênero para samplear, mas por sua experiência no trabalho de discotecário de música brasileira dos anos 70 e pesquisador de vinil, ele gosta bastante de usar o som nacional para se diferenciar dos outros produtores.

“Samplear um Marvin Gaye, um Curtis Mayfield, um James Brown, todos os grandes nomes do funk soul mundial, todos esses grandes beatmakers que eu admiro aí [já] fizeram, então eu prefiro até pra ter um pouco de ineditismo e uma coisa nova. Samplear música brasileira porque eu acho que é o que a gente tem pra mostrar pra fora. A gente tem uma música muito rica de textura, de timbre”, explica Formiga.

Antigamente havia poucos formatos de mídia e o sample era geralmente feito só pelo vinil. Hoje mesmo com a opção de diversos tipos de mídia ainda existem produtores que preferem samplear músicas direto do vinil como os beatmakers que participam do Beat Brasilis, Rafa Jazz e o próprio Formiga.

“Eu gosto de samplear do vinil porque eu acho que ele vem com essa textura do disco de vinil com o chiado. Às vezes até com uma gravação malfeita e isso é muito legal pro sample. Se ganha uma riqueza no seu beat por isso”, comenta Formiga.

“Samplear no vinil a parte boa é que você mexe na música ali na hora, no cabo se mexe no beat, no mixer você já pode tirar grave, tirar médio, tirar só o agudo. Você tá sampleando direto da fonte, tá pegando a qualidade máxima, com a textura do vinil, é bem mais legal, é bem mais rápido. Às vezes na internet você acha [a musica] e a qualidade tá ruim e você tem que achar outra. Não é só ouvir, você quer samplear. Você quer a música com a melhor qualidade possível, direto da fonte tem essa vantagem.”, explica Rafa Jazz.

O sample também pode ser considerado um tributo, homenagem ou resgate. “[Ao utilizar um sample] você valoriza o trampo do cara. Se você tá fazendo alguma coisa em cima daquela música, é porque alguma coisa você achou legal naquela música. Algum valor você achou ali. Dá uma nova ideia, uma brisa nova”, comenta Auro, 33, fã de música, que trabalha na Casa Brasilis.

Apesar de o sample ter se tornado famoso por seu uso no rap, ele não é algo exclusivo do gênero. Um exemplo fora do rap é a música “Jungle Lion (1973)” do grupo jamaicano “Lee Perry & The Upsetters” que sampleou o riff de “Love and Happiness” (1972) de Al Green.

“O sample na verdade é uma ideia muito antiga. Ele só não tinha esse nome, mas sempre existiu. Sempre rolou uma cópia, uma releitura, a partir disso, acho que é meio que uma coisa natural do ser humano, do processo de criação”, comenta Rafa Jazz.

A questão legal

Alguns artistas não gostam que suas músicas sejam usadas como sample. A questão da liberação do sample envolve a editora musical que possui os direitos da composição e o processo costuma ser burocrático. Para um sample ser liberado para uso comercial por outro artista em uma nova composição, o produtor precisa do “ok” do dono dos direitos da música. Se um artista utiliza um sample sem autorização, ele pode ser processado por infração de direitos autorais. Um exemplo recente é o caso do rapper de Pittsburgh, Mac Miller, que na faixa “Kool Aid And Frozen Pizza, sampleou “Hip 2 Da Game, música do clássico produtor/ rapper Lord Finesse.

Finesse processou o artista de Pittsburg pedindo 10 milhões de dólares de compensação pelo uso não autorizado de sua canção, mas os dois acabaram chegando a um acordo depois.

A linha tênue que separa o sample do plágio são os créditos. No Brasil essa questão é um pouco mais obscura e nem todos os artistas pedem autorização antes de utilizar sample em suas músicas.

Grande parte dos samples que são utilizados por qualquer um podem ser encontrados no Whosampled, o maior catálogo de samples disponível digitalmente. Qualquer pessoa pode se cadastrar no site e utilizá-lo para localizar samples e identificá-los. Os usuários podem auxiliar na expansão do catálogo, identificando a música que foi utilizada como sample e detalhando o tempo exato em que o sample começa, além de qual elemento/ instrumento/ parte do som (bateria/ vocal) é utilizado na respectiva composição.

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