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“Bebê Rena”: caso real de stalking inspira grande série da Netflix sobre saúde mental

“Bebê Rena”, a nova série da Netflix

Bebê Rena” é uma minissérie britânica da Netflix criada, narrada, escrita e estrelada por Richard Gadd. A produção tem 7 episódios no total, cada um com média de meia-hora. Apesar do volume teoricamente baixo de episódios, o conteúdo da série e o efeito de sua maratona é bem pesado e pode ser atordoante por sua trama principal, que é baseada na experiência pessoal do seu showrunner como uma vítima de stalking.

Donny é um bartender de um pequeno bar de Londres que mora na casa da mãe de sua ex-namorada. Seu sonho é ser um comediante de sucesso, mas sua carreira está estagnada, apesar dele tentar se apresentar em clubes de comédia nas horas vagas. Nada de mais até aqui. Tudo muda quando Martha entra no bar em que ele trabalha. Ela não tem dinheiro para pedir nada, mas o garçom sente pena dela, pois sua fisionomia era a de uma pessoa no fundo do poço. Donald Dunn, o nome completo de Donny, serve uma bebida por conta da casa a esta mulher fisicamente abatida. Este ato iniciará um movimento de cascata irreversível, Martha se tornará uma stalker de Donny, tanto na vida real quanto na internet.

Inicialmente, “Bebê Rena” parece mais uma série sobre stalkers. Esse é o comentário geral associado a essa nova produção que chegou ao catálogo da Netflix em 11 de abril, entretanto, a obra é muito mais do que isso. A discussão sobre stalking/ perseguição é só o ponto de partida para várias outras discussões com camadas bem mais profundas que envolvem masculinidade e saúde mental. Uma série recente da própria Netflix e que fez muito sucesso com a mesma temática de stalking foi “You” (2018-2024), mas esta era contada sob a perspectiva do stalker, que neste caso era um homem. Já em “Bebê Rena“, apelido de Martha para o Donny, a perspectiva é contada pelo stalkeado/ perseguido.

Outro trabalho recente que dialoga com o conteúdo de “Bebê Rena”, apesar de não se tratar principalmente de stalkers, é outra minissérie britânica chamada “I May Destroy You” (2020), produção da HBO que se encontra disponível no catálogo da Max. O abuso sexual sofrido pela protagonista é um dos temas principais desta obra criada e estrelada por Michaela Coel. As duas séries tratam de abuso sexual e saúde mental de uma maneira bastante sensível.

Donny (Richard Gadd) em "Bebê Rena" (Foto: Netflix/ Divulgação)
O protagonista Donny (Richard Gadd) durante cena de “Bebê Rena” (Foto: Netflix/ Divulgação)

Apesar dos temas pesados tratados por ambas as séries, as duas produções do Reino Unido possuem pitadas de de humor. O senso de humor dos britânicos é peculiar e um pouco mais ácido do o que estamos acostumados, bem diferente do humor norte-americano enlatado característico das tradicionais sitcoms. O humor em “Bebê Rena” não é utilizado como uma fuga, mas como uma expressão do absurdo de toda aquela situação. O aspecto de comédia da série fica mais nos primeiros episódios e o leitor deste texto que ainda não assistiu pode se preparar para isso. O tom vai ficando mais pesado a cada episódio.

No desenrolar da história, Donny tenta se colocar no lugar de Martha, sua stalker. A série explora muito bem essa inversão de valores entre vítima e algoz. Sua insegurança e sua baixa autoestima são compartilhadas com aquela mulher que reconheceu seu sofrimento e diz o que ele gostaria de ouvir – pelo menos nas interações iniciais entre os dois. Essa ambiguidade é retratada durante toda a obra, mas sem nunca relativizar a gravidade daquela situação. A saúde mental é outro tema em alta no mundo contemporâneo e a série dispõe de um material farto para se pensar e analisar a sociedade que produz este tipo de comportamento nos indivíduos.

O trabalho de câmera presente em “Bebê Rena” não é tão especial assim, mas ainda é melhor do que o da já citada “You”. A minissérie de Gadd é um trabalho visualmente mais caprichado e, neste sentido, também lembra um pouco mais a já citada “I May Destroy You“. A produção de 2024 não está preocupada apenas com o texto do personagem, mas utiliza enquadramentos e iluminações diferentes em momentos específicos para atingir um impacto dramático maior e ao mesmo tempo retratar o estado mental do personagem principal, enquanto a outra série da Netflix não tem esse tipo de tratamento. Esses recursos são utilizados muito bem por Weronika Tofilska e Josephine Bornebusch. As duas dividiram a direção dos episódios, com a primeira dirigindo a maior parte dos episódios iniciais e a segunda dirigindo a última metade. O episódio 4, dirigido por Weronika, é um dos destaques da produção neste aspecto, não apenas pela direção, mas pela qualidade da sua montagem. A montagem da série em todos os episódios é muito perspicaz em dosar os efeitos de tensão e os de comédia, gêneros que, em teoria, são conflitantes, mas acabam se complementando.

O figurino é uma peça chave da construção dramática do protagonista e vale a pena destacar como este recurso é usado. O personagem usa uma roupa diferente para fazer seu show de comédia. No seu trabalho e no seu dia-a-dia, suas roupas não costumam se destacar, mas seus looks para os shows são propositalmente exagerados e chamativos com o uso de cores quentes como o amarelo. Ele quer ser o centro da atenção quando está se apresentando para uma plateia: a luz está em cima dele, o microfone está em sua posse e os olhares das pessoas são automaticamente direcionados a si – o cenário perfeito para alguém que anseia desesperadamente por atenção. Enquanto na vida normal, Donny é uma pessoa comum que some no meio da multidão e aceita tudo que lhe é imposto; quando está no palco, ele busca construir uma identidade própria com suas próprias regras. Este contexto o favorece.

As atuações também são um dos destaques da série, tanto de Richard Gadd como Donny – uma versão ficcionalizada de si mesmo lidando com traumas – quanto a de Jessica Gunning como a stalker Martha. Ela consegue fazer o público ter sentimentos ambíguos sobre sua personagem – assim como o personagem de Donny sente por sua perseguidora em alguns momentos da história.

Bebê Rena” é uma série dramaticamente muito rica e supera as recentes “You” e “I May Destroy You” em sua proposta e na sua realização. A obra é um sintoma dos nossos tempos. Alguns dos assuntos tratados incluem masculinidade, heteronormatividade, saúde mental, depressão, abuso de drogas e abuso sexual. São temáticas em alta, outras séries recentes como “Sex Education” (2019-2023), também da própria Netflix, e “Euphoria” (2019), da HBO e disponível da Max, também tratam destes assuntos de uma forma diferente. O mercado audiovisual está disposto a capitalizar neste tipo de conteúdo, mas o sucesso de “Bebê Rena” serve para mostrar que o público também está sedento por produções que se aprofundem mais no assunto e tenham um tratamento estético mais apurado. A minissérie criada por Richard Gadd é um thriller psicológico que prende a atenção do público durante todos os sete episódios e constrói um retrato comovente e atual da crise de saúde mental a que nossa geração está exposta.

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