Essas duas perguntas que abrem meu texto são difíceis de responder e não proponho aqui uma solução, mas acho que passou da hora de pensarmos em novas saídas para o reconhecimento da arte e da cultura fora dos EUA.
Quando, em janeiro, FKA Twigs lançou “EUSEXUA“, ela causou um certo “barulho” no mundo da música, literalmente e metaforicamente, já que o álbum ia na contramão de todas as convenções de gênero. Chegou-se apostar que finalmente um álbum com linguagens muito diferentes do convencional ia ganhar um grande número de indicações ao Grammy, mas também imaginava-se que ao longo do ano o álbum perderia força; com a lista de indicações sendo liberadas nesta sexta-feira (07/11), vemos que a segunda coisa é o que aconteceu, o álbum foi indicado só na categoria de “Melhor Álbum de Música Eletrônica“, e a pergunta que fica é, com Rosalía fazendo o lançamento do seu álbum em novembro e indo na mesma linha de fazer algo grandioso, mas aqui apostando em outros gêneros e na universalização da música como arte, que no entanto em igual medida com FKA Twigs quando em completa imersão leva ao transcendental e foge das categorias convencionais, terá força para chegar no Grammy 2027, como Bad Bunny chega agora em 2026, ou se será esquecida como FKA Twigs?

Bad Bunny faz história e se torna o primeiro artista cantando em um idioma que não é o inglês nas três principais categorias: álbum do ano, gravação do ano e canção do ano. Ele ainda foi indicado em mais três categorias, conquistando ao todo seis indicações. Ao lado de Leon Thomas e Sabrina Carpenter, estão entre os três com mais indicações; em segundo lugar está Lady Gaga e em primeiro Kendrick Lamar, com nove indicações, que em fevereiro de 2026 deve novamente ser o artista mais premiado da noite, igual em 2025.
Entre a nostalgia do funk, soul, R&B de Leon Thomas ou SZA, das décadas de 70 e 80 dos tempos de ouro da música norte americana, que tem sim seu valor, mas que parecem não acrescentar novas leituras ao mercado fonográfico e ser mais do mesmo, passando por uma leitura anticapitalista e anticolonialista de Bad Bunny, mas que também volta suas músicas e composições para o passado, tendo então aqui como destaque o conteúdo político e seu poder de mobilização em nome de uma causa e não a estética, indo para Lady Gaga, que entre os mais indicados é também a que mais se arrisca, inova e tenta trabalhar com diferentes formas de reproduzir sua dor, mas que peca por ser declaradamente uma expressão sobre sua identidade artística e um grito de busca por liberdade que primeiro parte de si, para talvez depois chegar nas comunidades que apoia e chegando finamente em Kendrick Lamar, este sim considerado por muitos como um dos maiores nomes da cena musical contemporânea, seja pela sua autenticidade e inovação e que consegue dialogar muito bem forma e conteúdo, para narrar a dor, não só sua, mas de toda uma comunidade que vive sob a opressão, mas que o Grammy parece reconhecer só porque seria extremamente cancelado por milhões de jovens apaixonados que se reconhecem em Kendrick Lamar e hoje movimentam a indústria musical americana, o mesmo movimento que parece acontecer com Sabrina Carpenter, mas que ao contrário do primeiro, esta sem merecimento algum, porque faz um pop farofa e vazio.
Entre os indicados a artistas revelação aparece o nome de Addison Rae, cantora que já vinha flertando com o estrelato, a partir de virais do TikTok ou de participações especiais em filmes e álbuns de outros artistas, e tem com seu álbum de estreia finalmente seu nome alçado aos holofotes, personificando uma estética hyperpop, sendo influenciada por artistas como Charli XCX, Britney Spears, Lana Del Rey, entre outros. É uma aposta quase certa para o prêmio, mas parece que faltou coragem ao Grammy para também indicar a igualmente talentosa, mas menos viral e talvez por isso esnobada pela academia, Rose Gray.
Sendo assim, a inovação estética e artística até tem um certo espaço para ganhar os holofotes da academia, desde que ela conduza a uma narrativa de representação para a premiação ou traga consigo um apelo midiático e de público, o que definitivamente não parece ser o caso de Rose Gray e FKA Twigs, porque ambas tencionam ao máximo e provocam o que é pop e o que não é.
“Eusexua” é um álbum que desafia limites e que encontra em contrastes o ápice do que é fazer arte em nome de uma ressignificação da dor e de feridas abertas do passado.
A beleza dos contrastes de elementos de música clássica, como a harpa e a voz de soprano, que lembra música erudita, e elementos da música clubber, como as guitarras elétricas e os sintetizadores, que criam a sonoridade da música eletrônica, dão o tom da atmosfera de um mundo selvagem, retorcido, raivoso, mas que é controlado por um “eu” que absorve todos esses sentimentos em nome de uma transcendência momentânea, em que a música é um fio condutor de uma subjetividade que quer dançar em uma pista que estimule a imersão emocional plena. “Eusexua” parece um estado de ser que é anterior à forma, e a construção do álbum é um atestado de que a música pop caminha cada vez mais para as arriscadas experimentações, inovações tecnológicas, misturas de gêneros e uma investigação profunda das subculturas alternativas espalhadas pelo mundo todo.
A jornada sensorial criada por FKA Twigs e que transita entre o clássico e o futurista se destaca por carregar em sua essência o peso de uma narrativa em que a música parece ser uma distração para as piores partes de si e a porta para se libertar das dores mais profundas que podem habitar aquele que, apesar de estar aqui, se encontra perdido.
A dualidade de força e vulnerabilidade é que faz de “Eusexua”, em seu universo, uma entidade viva, e o convite de FKA Twigs com seu álbum é nos mostrar o porquê disso. A sonoridade do álbum remete à ideia de que todos, em alguma instância, gostaríamos de ser semideuses em um fluxo inconsistente, em que a música é um portal de elevação e transmutação do corpo. Existe nisso uma aura de mistério e sobrenatural, que são elementos constitutivos da identidade excêntrica dessa nova era da artista, e mesmo que o excêntrico possa ser perturbador, aqui o convite é para relaxar e aliviar a mente, jogar-se na pista e, como ela afirma, “quando uma menina se sentir bem, você saberá“.
“Lux” parece fazer esse mesmo convite, mas, ao invés de uma pista de dança, Rosália quer nos levar a um culto, em que a música é Deus. É uma escolha ousada e desafiadora, mas que abre portas para se imaginar futuros possíveis para a música pop; e, como vimos com FKA Twigs, às vezes alinhar forma e conteúdo não adianta, mesmo que esta seja uma das tarefas mais difíceis no mundo contemporâneo, é necessário também se manter midiático e relevante diante do público e dos algoritmos do streaming.
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