Cinema

La Haine (O Ódio): clássico contemporâneo do cinema, continua atual e relevante

Além da temática atual de “La Haine” (O Ódio) sobre violência policial o que chama atenção na obra são as escolhas técnicas, estilísticas e estéticas do seu autor

La Haine (O Ódio)

O filme “La Haine [“O Ódio”] (1995) completa 25 anos de seu lançamento em 2020. A obra continua mais atual do que nunca se comparada com a realidade contemporânea em que todos são bombardeados constantemente por novas notícias e imagens de violência policial mundo afora — as mais recentes foram as mortes do menino João Pedro no Rio de Janeiro, George Floyd nos EUA e de Adama Traoré na França, todas resultaram em protestos por parte da população de cada país.

“Ele tem um discurso bem direto e sensível, sem racionalizações excessivas. Não é um filme-de-tese”, comenta André Renato, 40, graduado e mestre em Letras pela USP e UNIFESP respectivamente e fundador do site “Sombras Elétricas” em que publica periodicamente críticas de cinema desde 2006.

A tradicional revista britânica de cinema Sight & Sound estampou a obra na capa da sua edição do mês de maio que ainda contém uma longa entrevista de seis páginas com o realizador da obra. “O próprio diretor, em entrevista recente na Sight and Sound, declara que o filme nasceu da comoção que ele sentira em relação a um caso parecido que apareceu nos noticiários. Daí, ele interrompeu outros projetos para realizar logo La Haine. É um filme que transpira um senso forte de urgência”, adiciona André.

A ideia para o longa-metragem veio de um evento real, o assassinato do imigrante Makomé M’Bowole, ocorrido no dia 6 de abril de 1993 enquanto o jovem estava sob custódia da polícia e os subsequentes protestos e confrontos de manifestantes com a polícia — imagens reais dos distúrbios foram utilizadas na segunda cena do filme.

“O que aconteceu com o garoto desde o começo do dia para terminar assim? Eu decidi mostrar a história do ponto de vista do garoto porque ninguém conhecia os jovens especialmente em 1995 — ou 93. Eu conhecia os jovens que costumavam sair com ele; eles têm uma voz, eles têm um motivo para serem assim e tem um motivo para que a interação com a polícia seja assim. Nós precisávamos expor isso para as pessoas entenderem”, explica Mathieu Kassovitz — o diretor do filme — em conversa com o crítico Kaleem Aftab da S&S.

Apesar da origem francesa, Kassovitz tira grande parte das suas influências do cinema norte-americano. “Quando tinha 12 anos eu assistia aos filmes de Steven Spielberg. Aos 17 eu assisti “Ela Quer Tudo” [disponível no Netflix] do Spike Lee. Esses filmes incríveis me fizeram querer ser diretor”, explica o realizador.

Ele também confidencia que se inspirou no modo que Martin Scorsese introduz os seus personagens em “Mean Streets” (1973) para apresentar os protagonistas de La Haine. Além disso há uma referência direta à “Taxi Driver” (1976) na cena em que Vinz — interpretado por Vincent Cassel — imita os maneirismos e a fala de Travis Bickle — interpretado por Robert De Niro — na frente do espelho. É difícil também não relacionar o filme a “Do The Right Thing” (1989), produção com autoria de Spike Lee, que também se passa durante um dia inteiro e aborda a violência policial sob a perspectiva do negro norte-americano.

Atores de "La Haine"
Atores de “La Haine” (Foto: Divulgação)

La Haine: a cinematografia poética combinada com o realismo

A obra foi filmada em cores, mas convertida em preto e branco para adicionar uma beleza poética à realidade retratada, além de servir para mostrar a universalidade da história que poderia acontecer em qualquer lugar, segundo o próprio idealizador.

A trama principal de “La Haine se passa em Paris, entre o subúrbio e o centro da cidade, e acompanha durante 24 horas a rotina de três amigos de personalidades e origens diferentes: Said (brincalhão e descendente de árabes), Vinz (o mais revoltado do grupo e de origem judia), e Hubert (boxeador e jovem negro que costuma ser a voz da razão do grupo). Todos os personagens usam os mesmo nomes que os atores possuem na vida real e são membros de minorias marginalizadas da França, país marcado por seu multiculturalismo.

O único detalhe é que a história se passa no dia seguinte a uma noite de protestos violentos no subúrbio de Paris que foi consequência do espancamento de Adbel, um jovem periférico como os protagonistas, enquanto estava sob custódia da polícia. Após o confronto da véspera, os ânimos continuaram acirrados entre a população local e as forças policiais e o fato de que uma arma pertencente a um agente de estado foi perdida durante o tumulto e encontrada por Vinz potencializou ainda mais a situação.

Segundo André Renato, o fato de que a produção foi feita em caráter de urgência como posicionamento e resposta política a fatos atuais e igualmente urgentes forçou diversas escolhas interessantes.

“Por exemplo: toda a segunda parte do filme, passada nas regiões centrais de Paris (ou seja, fora da periferia onde vivem os jovens protagonistas), utiliza-se de câmera com lente de grande distância focal (por isso, mais fechada nos personagens), em oposição à primeira parte, na periferia, filmada com lente grande angular que destaca a inserção dos personagens no espaço. O efeito estético e a implicação temática dessa escolha já foram bem analisados e lembram aquela urgência do cinema de câmera na mão dos anos 60, penso no Godard de Acossado, cinema na rua, cinema de guerrilha. Agora, o engraçado é que essa escolha de lente se deu porque a equipe de La Haine não conseguiu autorização para filmar nas ruas de Paris, foram clandestinamente mesmo, com equipe super reduzida e planos fechados nos atores”, explica André.

La Haine é mais que um filme sobre violência policial. Além da temática atual o que chama atenção nele são as escolhas técnicas, estilísticas e estéticas do autor da história. A obra consegue alternar organicamente entre um tipo autoral de realismo social e alguns aspectos que se assemelham ao surrealismo como durante as cenas de sonhos de Vinz.

Outros aspectos da história podem ser lidos e comparados com a realidade brasileira: a presença da cultura hip-hop entre aqueles jovens (o rap, o break-dancing e o grafite) e a diversidade étnica presente na força policial que não serve para coibir o abuso de poder e a discriminação por parte da policia — a violência estatal filtra não apenas por raça, mas por classe também.

O principal mérito do longa-metragem francês não se reduz apenas a ilustrar o conflito da juventude periférica versus policiais, mas sim a periferia versus a sociedade que a exclui — situação macro. As mudanças de lentes e enquadramentos dos personagens após a primeira metade do filme servem para reforçar visualmente este aspecto.

O retrato de uma geração

“A atual rebelião dos jovens europeus é diferente [em referência aos protestos de 68 na França]. É uma explosão de raiva, um extravasar de sentimentos contidos. Estão fartos de serem estrangeiros em sua própria terra. Filhos de imigrantes, mas nascidos na Europa, sofrem a dura exclusão de serem muçulmanos, negros, mestiços. Estão fora do mercado de trabalho, como sempre estiveram fora da aceitação como cidadãos de fato. Diferentemente de seus pais, que migraram para a Europa quando havia trabalho em abundância e faltava mão-de-obra, os que agora incendeiam carros são vítimas de uma crise de identidade: têm menos vínculos culturais com a terra dos pais e não são aceitos no país onde nasceram e se criaram. Desterrados, são identificados como população-problema e vítimas de todos os estigmas negativos. A atual rebelião juvenil européia é mais do que apenas expressão de vandalismo. É ao mesmo tempo um pedido de socorro, de maior visibilidade e uma demonstração de recusa. Recusa à fatalidade da exclusão social, que os condena à condição de desnecessários e indesejáveis. Mas não parece estar alicerçada em um projeto de utopia. Diferentemente de 1968, os que promovem a revolta de agora não querem mudar o mundo; apenas pedem para entrar nele…“ — descreve Francisco Toledo Dayrell de Lima no artigo “Por entre as Fissuras do Modelo Republicano Francês: Análise Fílmica de O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz”.

La Haine é um clássico contemporâneo do cinema e um retrato contundente do sentimento de inadequação e impotência de toda uma geração desiludida e que não aguenta mais estar do lado de fora seja na França, EUA ou Brasil.

Siga A Pista em todas as redes sociais (FacebookTwitter e Instagram) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, música e sociedade!