Literatura

A Morte de Ivan Ilitch: A Novela Existencialista de Tolstói

O célebre e pequeno livro escrito por Liev Tolstói representa o inconformismo com a morte e o significado da vida
L’ambulance improvisée (1865), do pintor Frédéric Bazille. A obra compõe a capa da primeira edição da L&PM Pocket (A Morte de Ivan Ilitch, Leon Tolstói — 1997)

Liev Nikoláievich Tolstói (1828–1910), ou simplesmente Liev Tolstói, foi um dos maiores escritores russos de todos os tempos, pertencendo ainda ao panteão do lado de grandes nomes como Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gogól e Ivan Turguêniev. O autor foi muito conhecido por seus romances: Guerra e Paz (1869) e Anna Kariênina (1877).

Entretanto, foi uma de suas pequenas novelas que impressionou a sociedade russa da época, A Morte de Ivan Ilitch — considerado uma de suas obras-primas junto ao seus grandes romances — que foi publicado em 1886. No texto, Tolstói irá narrar a vida de um servidor público chamado Ivan Ilitch até seu derradeiro e melancólico final.

A Morte de Ivan Ilitch descreve a percepção de uma vida farisaica, desprovida de sentido e de autorreflexão. Ivan Ilitch é um auto funcionário público da Rússia czarista do século XIX, tem um bom salário, boas posições e contatos, fez um casamento ligeiramente proveitoso, mas ao fim, acaba adoecendo e vê que sua vida em face da morte não tinha feito sentido algum.

O personagem pensa em tudo que deixou de fazer em sua vida, principalmente como havia vivido inercialmente desde então: muito mais com as projeções e escolhas de outrem, com base nas expectativas que outrem tinham em relação a ele, do que ele próprio nutria para si e por si mesmo”, descreve o escritor e professor, Flávio Ricardo Vassoler para A Pista. Flávio é doutor em Letras pela USP, e pós-doutor em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA).

No período em que escreveu esta digníssima novela, o autor já havido abandonado a escrita e renunciado toda sua vida pregressa diante de uma crise pessoal para se tornar um pacifista cristão. Possivelmente, só teve a iniciativa de retornar a escrever após uma carta de seu conterrâneo, Ivan Turguêniev que, em seu leito de morte, escreveu a Tolstói:

“Faz muito tempo que não lhe escrevo porque tenho estado e estou, literalmente, em meu leito de morte. Na realidade, escrevo apenas para lhe dizer que me sinto muito feliz por ter sido seu contemporâneo, e também para expressar-lhe minha última e mais sincera súplica. Meu amigo, volte para a literatura!”.

Ainda não se sabe ao certo o quanto essa carta foi importante para o retorno de Tolstói à literatura, mas fato é que o autor publicou a aclamada novela pouco depois — mais especificamente 3 anos após o falecimento de seu contemporâneo. O livro do autor contém muitas características biográficas e discute posições e pensamentos que o atormentavam na época.

A vida de Liev Tolstói e o contexto da obra

Portrait of Leo Tolstoy (1887) — Retrato pintado pelo ucraniano nascido na Rússia, Ilya Repin.

Liev Tostói veio de uma nobre família russa: fazia parte da aristocracia assim como o protagonista de sua novela, Ivan Ilitch. Sua crise moral, que fez com que o autor mudasse de vida por inteiro, ocorreu por volta de 1870. Diversas questões colaboraram para isso, uma delas foi a posição social da qual gozava.

A visão de mundo na qual passou a acreditar — como o desapego material, indagação do conceito de arte, abnegação do passado e a adoção da castidade — o transformaram em uma pessoa bastante controversa, o que acabou gerando muitas polêmicas nos periódicos da época, além de conflitos conjugais.

Ele passou a considerar todas as suas obras escritas até então como obras que não retratavam muito bem a realidade. Muitas dessas ideias foram expressas no livro “Uma Confissão”, em 1879. No texto, o autor russo discute alguns assuntos existenciais como o seu próprio sentido de “ser”, o sentido da vida e suas crenças.

“O texto ‘Uma Confissão’ — que já vem de uma tradição de confissões como a do Santo Augustinho e a de Jean-Jacques Rousseau — é um texto curto, mas altamente impactante. Nele, Tolstói exprime toda sua trajetória e reconfiguração de vida, a dimensão de que chegou à beira do penhasco do suicídio mesmo possuindo tudo o que as pessoas almejavam.

Ele se sentia vazio, não estava repleto, aquilo que vivia era farisaísmo puro e a compreensão da fé, da vida após a morte, da unidade do ser que não é destruída via espirito pela própria morte, ou seja, uma percepção da transcendência cristã.”, explica o Professor Flávio Vassoler.

Visto isso, é fácil constatar, ao ler a novela, que a intenção de Tolstói era mesclar sua nova prédica moral com seu grande talento literário, pois o arrependimento de Ivan Ilitch no leito de morte representa o próprio arrependimento do autor com sua vida anterior.

Os dilemas e medos presenciados e descritos no livro por Ivan Ilitch, a respeito do significado da vida e essa apreensão com a morte, foram pensamentos que também assombravam o autor em vida.

“Liev Tolstói tenta romper com aquilo que Ivan Ilitch só vai encontrar no final de sua vida, quando se depara com a morte e com a doença que irá ceifa-lo. Tolstói tentou fazer isso em vida, romper com o farisaísmo e com a exploração de classe. Então existe esse paralelismo, uma iluminação da vida diante das últimas perguntas sobre sentido.”, analisa o Professor Vassoler.

Guérassim: um companheiro em seu leito de morte

Ivan, the Terrible and His Son Ivan on 16 November 1581 (1885) — por Ilya Repin.

A morte foi um assunto que sempre causou um certo incômodo em Tolstói. Ela se fez presente em seus romances anteriores — como em Anna Kariênina — que precedem a mudança drástica que o autor tomou em sua vida.

Tolstói tinha esse pensamento, a princípio, de que a morte é o fim da vida, e essa é uma conclusão a que chegam: Alan Kardec, Fiódor Dostoiévski e Martin Heidegger; eles concluem esse pensamento de que se a morte vai sustar a vida, a vida se esvazia completamente de sentido.

Essa foi uma conclusão de que chegaram alguns ateus também, como Albert Camus e Friedrich Nietzsche. Só que eles possuíam respostas diametralmente opostas, pois para eles, a dimensão salvífica da morte e de transcendência é a base da constituição da vida . Eles percebem que a morte é uma transição e não a finitude radical. Então, em A Morte de Ivan Ilitch, sobretudo em Uma Confissão, Tolstói conseguirá chegar nesse aspecto.”, conclui.

Em A Morte de Ivan Ilitch, o autor leva isso até as últimas consequências através de seu personagem. Aos poucos, quando acometido pela doença da qual não sabemos o diagnóstico, Ivan Ilitch sente que está se distanciando cada vez mais do mundo dos vivos.

Sua doença, até então física, consome sua psiquê. Ele não se identifica mais com os amigos, a família e não acredita no que dizem médicos. Sobre eles, o personagem nutre uma sensação de incompreensão, pois passam a tratá-lo de forma diferente e parecem não se compadecer da forma esperada com sua situação. Agem como se estivessem tentando manter um segredo do qual devem privá-lo a todo custo, segredo esse que Ivan já tem conhecimento e que concluiu na solidão de seu quarto: irá morrer em breve.

“A vida existiu, mas eis que está indo embora, embora, e eu não posso detê-la. Sim. Para quê me enganar? Não é evidente para todos, com exceção de mim, que estou morrendo, e a questão reside apenas no número de semanas, de dias, talvez agora mesmo? Existiu luz, agora é treva. Eu estive aqui, agora vou para lá! Para onde?”

(A Morte de Ivan Ilitch, Liev Tosltói — Editora 34, página 47)

A única pessoa que Ivan Ilitch consegue enxergar de outra maneira, é seu criado Guérassim. O personagem tem uma relação muito mais próxima e afetuosa com o protagonista do que as outras pessoas ao seu redor.

Diariamente ao anoitecer, Guérassim dirige-se ao quarto do enfermo, inicialmente para fazer seu dever como criado, mas ao longo do tempo, Ivan adquire uma certa empatia, pois o tratamento e a forma com que Guérassim dirige-se a ele é bem distinta — mais humilde e humana, longe daquele receio e insegurança que vinha recebendo até então.

Guérassim representa um dos pensamentos que Tolstói compactuava, como explica o Professor Flávio Vassoler:

Tolstói tinha uma questão muito Rousseauniana, pois o Jean-Jacques Rousseau possuía essa dimensão de que o homem é bom e a sociedade o corrompe. E Tolstói também tinha esse ideal de que as classes menos favorecidas tinham uma propensão mais equitativa, genuína e espontânea; menos conspurcada pela lógica do poder, diferentemente das classes mais abastadas.”, afirma.

Tolstói faleceu decorrente de uma pneumonia no rigoroso inverno de 1910, aos 82 anos. Foi encontrado na estação de trem de Astapovoa após fugir de sua residência e abandonar sua esposa, pois já não nutriam uma relação muito saudável.

Embora tenha tido um controverso e triste fim, deixou como legado em suas obras — e através de sua própria vida — pensamentos e filosofias que são discutidos até o hoje no ramo da literatura.

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