Cinema

“Mank”: David Fincher e o cinema de autor

Fincher mostra o quão importante foram Mank e Orson Welles para a história do cinema

Mank
Gary Oldman durante a filmagem de “Mank”

Mank — David Fincher (2020)

Mank” (2020), produção original da Netflix dirigida por David Fincher, conta a história do roteirista Herman J. Mankiewicz. Fincher é responsável por várias obras de sucesso como “Se7en — Os Sete Crimes Capitais” (1995), “Clube da Luta” (1999), “Zodíaco” (2007), “O Curioso Caso de Benjamin Button” (2008), “A Rede Social” (2010) e “Garota Exemplar” (2014).

Mankiewicz foi uma das figuras mais importantes da Época de Ouro de Hollywood e desempenhou papel primordial na criação de diversas produções emblemáticas por meio de sua escrita. Apelidado carinhosamente de Mank, o fato mais marcante de sua biografia foi ter sido co-autor do script de “Cidadão Kane” (1941) em parceria com o diretor Orson Welles.

O roteiro de “Mank” foi escrito originalmente por Jack Fincher, pai de David Fincher, que faleceu em 2003. Jack acreditava em uma narrativa criada pela crítica de cinema Pauline Kael no artigo “Raising Kane” de 71. Em texto publicado na revista New Yorker, Kael defendia que Mankiewicz merecia todos os créditos pela genialidade do filme e que Welles não participou da redação do roteiro. Ela foi desmentida por pesquisadores posteriormente, mas o artigo causou muito barulho na época.

Fincher compra parte da lenda de que Mank foi mais importante do que Welles para a criação de “Cidadão Kane”, mas ele não está tão interessado na questão como o pai. O diretor esconde um pouco a presença física do personagem de Welles interpretado por Tom Burke, enquanto espiritualmente reverencia Welles ao utilizar alguns dos mesmos recursos cinematográficos de “Cidadão Kane”. A construção do personagem de Mank também é digna de nota. A atuação de Gary Oldman como Mankiewicz dá forma à um herói tragicômico fascinante e problemático que desestabiliza a atmosfera de todo lugar em que passa.

O diretor David Fincher ao lado de Gary Oldman, ator que interpreta Mankiewicz

O estilo de Fincher e a influência de Orson Welles

O estilo formalista de Fincher se assemelha mais com a tradição do cinema clássico de Hollywood, que subscreve certas normas que não podem ser quebradas, do que à do cinema moderno inaugurado por “Cidadão Kane”, que propõe novas relações com a linguagem cinematográfica. Em seus filmes, David costuma seguir uma estrutura tradicional ao contar uma história de modo a conduzir o espectador à algum lugar específico. Ele não gosta de confundir o público. Os enquadramentos costumam não fugir das convenções. A montagem é invisível. A câmera é impessoal, como se cumprisse um mero papel documental ou jornalístico.

Em “Mank”, Fincher subverte algumas das próprias regras. Assim como em “Cidadão Kane”, há o uso diferenciado da profundidade de campo em diversas cenas e a história tem uma estrutura temporal não-linear permeada por flashbacks. Enquadramentos heterodoxos são utilizados. A fotografia em preto-e-branco também é altamente estilizada, diferente de suas obras consagradas.

A câmera parece querer lembrar o espectador constantemente de que ele está assistindo à um filme. David Fincher não está interessado em chegar à uma conclusão determinada como em suas produções de detetive/ investigação. O cineasta parece mais preocupado em criar uma atmosfera própria de outros tempos, emular a experiência cinematográfica de imersão na época em que a história se passa. Essa proposta é evidenciada pelas digressões temporais separadas como um script clássico digitado à maquina de escrever como era de costume antigamente, além de servir para contextualizar o público.

Fincher, assim como Welles, pega emprestado recursos de cineastas que vieram antes dele e os ressignifica para criar uma obra autoral com sua marca. Há influência de diversas escolas e tradições no cinema dos dois.

Apesar do primeiro longa-metragem de Orson Welles ser um filme moderno, não há uma ruptura completa com a tradição. O astro-prodígio, que lançou sua obra prima aos 25 anos de idade, foi bastante influenciado pela hollywood clássica e admite isso em depoimentos. Em entrevista, Welles cita “No Tempo das Diligências” (1939) de John Ford como uma das principais referências para “Cidadão Kane”. Ford curiosamente também acabaria batendo Orson no Prêmio de Melhor Diretor e de Melhor Filme na Cerimônia do Oscar de 1941 pelo seu trabalho primoroso e belíssimo em “Como Era Verde o Meu Vale”.

É claro que “Cidadão Kane” não pode ser comparado com “Mank” em questão de importância para a história do cinema. Fincher, entretanto, merece o crédito por prestar tributo aos autores intelectuais de um dos melhores filmes da história e usar seu prestígio para recolocar em pauta a discussão dos clássicos para um público contemporâneo e maior, via Netflix.

Ninguém pode prever qual lugar David Fincher ocupará no ranking de cineastas mais influentes da história. Ele tem apenas 58 anos de idade, possui diversos projetos considerados clássicos contemporâneos em sua filmografia e não parece estar satisfeito. Recentemente, David assinou um contrato de exclusividade por 4 anos com a Netflix, então podemos esperar mais material novo no futuro.

O fato é que com “Mank”, Fincher reafirma sua posição como um dos principais diretores-autores de sua geração.

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