Música

Indústria Cultural x Kendrick Lamar

“Aí o Grammy, pensando essa questão do Kendrick Lamar e da Taylor Swift, eu não tava esperando que ele fosse ganhar, embora achasse que ele merecesse porque o disco dele de fato que revolucionou e foi um marco no rap, era um disco que não tava sendo cantado só nos shows, nas festas, mas ele tava sendo cantado nas ruas quando as pessoas tavam se manifestando no Black Live Matters” — Viny Rodrigues

No dia 16 de fevereiro de 2016, aconteceu a 58ª cerimônia do Grammy Awards nos Estados Unidos. A premiação tinha como principal estrela da noite o melhor rapper da atualidade: Kendrick Lamar. Com 11 indicações, no total, pelo seu último álbum To Pimp A Butterfly, Kendrick estava no auge na carreira. Apenas Michael Jackson com o superlativo álbum Thriller obteve mais indicações em um mesmo ano, com 12 no total. Mas no final do evento, Kendrick não ganhou o principal prêmio da noite.

Kendrick não era apenas o protagonista da premiação — pelo menos deveria — era também o artista com melhor conceituação pela crítica especializada, que considerava seu álbum transcendente dentro do segmento.

Segundo Pedro Tapajós, mais conhecido como Pedro Philosopop, graduado em Matemática eBiblioteconomia pela Universidade de Brasília — UnB e mestre em Filosofia da Comunicação pela mesma universidade, especialista em cultura pop e influente personalidade intelecto-midiática com cerca de 62,2 mil seguidores no Twitter, o que fez Taylor Swift ganhar o prêmio de melhor álbum do ano foi o fato de a indústria fonográfica ter mais simpatia pela mulher brancajovem do que pelo negro politizado.

“O fato da indústria fonográfica ter mais simpatia pela mulher branca e jovem do que pelo negro politizado. Há de se ver os votantes nesse prêmio: não é o povo, e sim os representantes da indústria, logo favorecem algo menos ameaçador, mas ainda representativo do contemporâneo.”

O racismo estrutural dentro da indústria fonográfica

Kendrick Lamar
Kendrick Lamar durante a 58ª edição do Grammy
Créditos: Reuters

Esse álbum tem influências das matrizes da música negra, com árduo trabalho de pesquisa referencial e assuntos que estão em pauta sempre nas discussões sobre discriminação racial, emancipação do indivíduo negro e como ele é visto dentro de uma sociedade na qual existe o racismo estrutural e que desvaloriza o negro a cada instante.

“Pensar o racismo estrutural dentro da indústria fonográfica é pensar o racismo estrutural como um todo, principalmente quando ele está relacionado com a cultura, porque, se a gente pegar tudo que é produzido dentro da cultura, principalmente dentro da música, não tudo, mas uma porcentagem muito grande dentro da música, ela vem das periferias que são majoritariamente negras e elas só conseguem chegar ao estrelato e, enfim, atingir um grande público, quando ela são capturadas por produtores culturais e artistas brancos. Eles pegam aquela manifestação negra, eles reinventam aquilo, eles deixam aquilo mais palatável, pegando as referências negras, mas embranquecendo a produção e aí a ela explode. Então o racismo estrutural dentro da música ele está como racismo estrutural dentro da sociedade. Acho que não está dissociado do resto das manifestações culturais que a gente tem”, diz Viny Rodrigues, produtor cultural, músico, formado em Ciências Sociais e mestre em Ciências Políticas pela PUC-SP.

Perguntado se a mensagem que os votantes do Grammy nos passaram aquela noite é de que um rapper só pode ganhar prêmio de rap e nada mais além disso, Viny é objetivo:

“Isso quando ganha prêmio de melhor álbum de rap do ano, a gente não pode esquecer que em 2014 o Macklemore ganhou e o Good Kid, M.A.A.D City do Kendrick Lamar que também é um clássico, o disco não tem 10 anos e já é um clássico. Então o menino lança dois clássicos, um atrás do outro, ele é muito gênio. Geralmente a premiação do Grammy já destina esse espaço pro rap e mesmo assim eles não dão prêmio pra um negro, o rap é o lugar do negro estar, fora de lá não”. E o que o conceito de Indústria Cultural tem a ver com isso? Tudo.

Indústria Cultural

O conceito de Industria Cultural desenvolvido por pensadores da antiga Escola de Frankfurt, teorizavam que o capitalismo e a sociedade do lucro transformavam até as produções artísticas em mercadoria. Em que essas produções deveriam seguir uma lógica quando produzida, assim como em uma fábrica.

Algo que também deveria ser consumido de forma crítica, torna-se objeto descartável dentro da arte. “O final de 2014 estava mergulhado em diversos temas espinhosos ligados às questões raciais. O disco de Kendrick era extremamente politizado, e musicalmente mais “difícil” do que o da Taylor. A academia fonográfica ainda é extremamente conservadora e branca. Bem, o Grammy Awards faz parte da Indústria Cultural. Sem a Indústria Cultural o objeto cultural Grammy não tem como existir, pois ele premia a própria indústria, se auto congratulando”, diz Pedro Philosopop. O jornalismo moderno transformou a notícia em produto.

As empresas jornalísticas mudaram a prática de reportar. Hoje interesses econômicos e políticos sobressaem-se ao interesse público. Aquela história de jornalismo objetivo e plural deixou de existir há muito tempo. A internet modificou o conceito de alienação.

Se os mass media não noticiam devidamente um fato, a internet ajuda a criar uma nova perspectiva analítica, transforma o indivíduo de mero receptor a um comunicador, por meio das redes sociais.

To Pimp a Butterfly

To Pimp a Butterfly é o terceiro álbum de estúdio de Kendrick Lamar, lançado no dia 15 de março de 2015, batendo recordes de reproduções na plataforma de streaming de músicas Spotify com 9,6 milhões de reproduções em menos de 24 horas.

O álbum é a construção lírica mais complexa na cena do rap dos últimos anos. Nada que Kendrick Lamar produz é simplista, tudo é cabuloso, tudo é complexo e intenso. O rapper de Compton, ao final das faixas: King Kunta, These Walls, Alright, For Sale, Hood Politics, ele recita um poema e a cada track adiciona mais um verso.

Na última faixa do álbum, Mortal Man, ele reproduz o poema na íntegra, explicando o conceito geral do álbum sobre a emancipação do indivíduo dentro de um cenário sem boas perspectivas. O destino natural de um jovem negro de Compton seria fazer partes de gangues, ter relação com o narcotráfico e a violências das ruas.

O álbum ilustra todo o percurso de Kendrick até chegar ao que ele é hoje. O disco tem influências de jazz, blues e funk norte-americano, uma saudação as raízes do rap. Cada música construiu uma mitologia ao redor do álbum, todas contribuindo para a formação da identidade de autoafirmação.

“Aí tem muita coisa de jazz, Thundercat tocando. É um disco que tem um discurso muito potente nesse sentido de empoderamento e relatos muito inteligentes do que é a juventude dentro dos Estados Unidos hoje. É um disco que não perdoa ninguém, não perdoa nem nós mesmo, os negros, por exemplo a letra de The Blacker the Berry é uma letra que não é pros brancos, mas também para os negros, porque fala de matarmos nós mesmos. Enfim, eu acho que o Kendrick Lamar consegue pegar esse espírito dos anos 90, do Pac. Musicalmente o disco tem participações incríveis, como Flying Lotus mentorando, Thundercat, um monte de gente foda e liricamente é um marco, fazia tempo que não tinha um disco de rap que fosse tão potente nesse sentido. To Pimp a Butterfly é o disco da década para mim” analisa Viny Rodrigues.

No álbum, podemos acompanhar contradições, incertezas e problemas em toda a trajetória criativa de Kendrick durante o seu processo de concepção do álbum. De uma reflexão sobre os níveis da sociedade e o ambiente em que Kendrick está inserido em King Kunta, há uma fase depressiva, de questionamentos e incertezas em U, do momento de esperança, em que “Tudo ficará bem” por Alright e o hino de afirmação e empoderamento de I, que segundo o próprio Kendrick Lamar, em entrevista para a Hot 97 — uma rádio norte-americana — é a melhor música que ele já escreveu, porque ele nunca pensou que estaria com a mentalidade para fazer uma canção positiva tendo crescido em torno de tanta negatividade em Compton.

Mesmo sem ganhar o prêmio de melhor álbum do ano, a valorização de Kendrick por quem vive e escuta rap é incomensurável. Kendrick Lamar está para o hip-hop como a água está para o corpo. A partir de To Pimp a Butterflfy se fez uma nova era dentro do hip-hop e da música. A magnificência da arte de rimar hoje está personalizada em um indivíduo. Vida longa ao rei, vida longa a Kendrick Lamar.

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