Literatura

Entrevista com a professora Ji Yun Kim, tradutora de “Atos Humanos” de Han Kang

A capa de “Atos humanos” de Han Kang (Foto: Todavia Livros/ Divulgação)

Lançado no Brasil em 2021 pela Editora Todavia, o livro “Atos Humanos“, da autora sul-coreana Han Kang (mais conhecida por “A Vegetariana“), é um retrato visceral dos horrores vividos pela população da Coreia do Sul durante o levante estudantil na cidade de Gwangju. Em 18 de maio de 1980, data que virou um marco na história do país, o levante foi violentamente refreado pelo exército, que causou a morte de várias pessoas no que ficou conhecido como Massacre de Gwangju.

O livro é dividido em 6 capítulos e 1 epílogo, cada um sendo narrado por um personagem diferente. De alguma forma, esses personagens estão ligados pela tragédia, tanto pelo sofrimento quanto por laços divididos com as vítimas. A medida que lemos, vamos nos inserindo cada vez mais nas histórias narradas, tendo emoções e até sensações físicas despertadas. Esse potencial sensorial da obra vem do poder descritivo cruel e desmedido da autora, sendo este um de seus maiores trunfos.

Han Kang (Foto: CLAUDIO ÁLVAREZ)

A autora, Han Kang, é um dos maiores nomes da literatura sul-coreana na atualidade. Nascida em 1970 na cidade de Gwangju (concidentemente ou não?), Han Kang é conhecida por sua escrita impactante, que não poupa o leitor. No Brasil, as obras da autora vêm sendo traduzidas e publicadas pela Editora Todavia.

Atos Humanos“, a segunda publicação de Han Kang feita pela Editora Todavia no Brasil, foi traduzida pela tradutora e professora Ji Yun Kim. Ji possui um mestrado em Língua e Literatura Portuguesa pela Hankuk University of Foreign Studies e atua como docente na Universidade de São Paulo, na área de estudos coreanos.

A Pista conversou com Ji Yun Kim sobre o contexto histórico do livro, a obra em si e o processo de tradução. Confira abaixo:

Entrevista exclusiva com a tradutora Ji Yun Kim:

A PISTA: O livro tem como tema central alguns acontecimentos que se deram durante o levante estudantil em Gwangju em 1980, que foi brutalmente reprimido pelo exército sul-coreano. Como você reagiu quando soube desse contexto histórico da obra?

Ji Yun Kim: Eu não lembro quando eu aprendi sobre 5.18 (o levante de Gwangju) porque foi quando eu era criança na escola fundamental. Como eu nasci e cresci em Gwangju, tive várias chances de participar de diversos programas educativos em relação ao 5.18, como visita aos locais do levante dentro da cidade, cemitério coletivo de 5.18 e os museus. E também já tinha vários produtos culturais que tratam do contexto histórico de 5.18 como filmes, obras literárias e documentários. Quando soube que Hankang lançou o romance sobre 5.18, já comecei a ler sem pensar muita coisa.

A PISTA: Embora o livro seja ambientado em um episódio real, as histórias narradas em cada capítulo são ficcionais. Enquanto eu lia o livro, por exemplo, por vezes esquecia que aqueles relatos eram ficção, de tão vivos, cruéis e detalhados que eram. Onde você acha que se encontra a barreira entre ficção e realidade nesse romance?

Ji Yun Kim: Acho que a ficção é criada pelo uso particular e único da linguagem da escritora como sujeito de arte. O romance se baseia no acontecimento real mas cria o seu próprio mundo literário, que é diferente do passado ‘real’ onde o passado sempre se atualiza no presente. E acho que isso faz com que os leitores possam viver continuamente o passado no presente. Acho que a distinção entre ficção e realidade não depende da veracidade ou precisão da descrição do real, mas está no uso da linguagem. 


 A PISTA: Cada capítulo traz um ponto de vista diferente, narrado por algum personagem que viveu diretamente a repressão militar e/ou sofre as consequências disso. Qual é a importância desse recurso polifônico para a obra?

Ji Yun Kim: A polifonia do Atos Humanos não é só de personagens diferentes de cada capítulo, mas acho que inclui as nossas próprias vozes como leitor também. Porque embora cada capítulo esteja narrado por [uma] voz diferente, o ritmo do texto está criando o espaço onde todas essas vozes se tornam “minha voz”, como leitor aqui e agora. Claro, todas essas vozes diferentes estão fazendo um certo tipo de função para mostrar as diferentes consequências da violência histórica, e também devolver a voz para quem cuja voz foi violentamente tirada pelo autoritário. Mas a polifonia deste romance não para neste ponto. Ela convida ou obriga os leitores para dentro deste mundo literário. 


A PISTA:
Curiosamente, no epílogo do livro (“Lâmpadas cobertas de neve”), a voz da autora surge como personagem, embora guardando uma parcela ficcional. O que você acredita que motivou essa escolha?

Ji Yun Kim: Eu não posso dizer por ela… Então eu não sei a resposta. Mas pensei aqui sobre esta pergunta, naturalmente a partir da minha experiência de viver a obra um pouco mais lento (e doloroso) através de traduzi-la. Acredito que escrever sobre 5.18 em forma de romance deve ter exigido uma coragem imensurável. Hankang fala que a decisão de escrever sobre o tema meio que chegou no momento em que ela percebeu que ela não poderia mais avançar como escritora que ela quer ser senão [tratasse] o tema. E imagino aqui todo aquele processo de pesquisa antes da criação da obra. O quão doloroso e pesado deve ter sido. E a responsabilidade que ela deve ter sentido diante da tragédia. Acho que pode ser que o epílogo pode não ter sido uma escolha dela, mas algo que ela teve que colocar para se salvar, para ela poder aguentar e avançar em direção à dignidade humana que ela tinha tentado ao longo da sua vida como escritora. Eu, pessoalmente, chorei muito no epílogo quando eu traduzia o romance, e acho que foi porque de certa forma, eu podia respirar junto com a escritora finalmente depois de ter passado pelos capítulos anteriores com a respiração segurada por muito tempo. 

 A PISTA: Agora, vamos falar um pouco sobre o seu processo de tradução, a começar pelo título. O livro foi traduzido como “Atos humanos” em vários idiomas além do português, mas você revelou em algumas oportunidades que, em coreano (소년이 온다; “sonyeoni onda”), seria algo como “O menino vem”. Na sua opinião, por que a tradução “literal” do título não foi preservada?

Ji Yun Kim:
Para mim, foi porque a editora decidiu não mudar o título do inglês. Simples. Mas imagino aqui o seguinte. O romance ficou conhecido fora da Coreia a partir da tradução inglesa, então seguindo a lógica capitalista do mercado editorial, a editora recusou a minha proposta de O Menino Vem (Nem levou a sério). Mas só a editora saberia responder sobre a verdadeira razão. Eu não consegui porque os tradutores (na maioria dos casos) não têm força no sistema do mercado editorial. 

A PISTA: Ainda sobre escolhas de tradução, notei que nos capítulos em que o narrador interpela uma segunda pessoa, há por vezes uma diferenciação na formalidade (por exemplo, o uso de “tu”, de “você” e de “senhor”). Quais foram os desafios na tradução desses pronomes? Existiram outros desafios além desses?

Ji Yun Kim:
Bom, tem várias palavras para referir-se “segunda pessoa” em coreano, assim como tu e você. E cada um tem uma conotação diferente, no sentido de proximidade, ocasião, idade, e etc. Mas em português, tu e você tem conotações diferentes do coreano, em primeiro lugar, e também dentro do Brasil, dependendo da região. Mas mesmo assim, decidi manter o uso dos dois para mostrar que são vozes diferentes.

Os desafios são inúmeros em qualquer tradução. Eu tentei não interpretar o romance. Ou seja, tentei ‘traduzir’, não ‘interpretar’. Porque o romance (texto literário) não existe para mandar mensagem (claro, acaba mandando mensagens como uma das consequências), mas ele existe para a gente, leitores, se cria como sujeito. E para isso, o mundo da obra não pode ser achatado e fechado por ser interpretado (na tradução) para a compreensão mais natural e fácil do conteúdo. A obra deve continuar sendo aberta na tradução para as vozes diferentes serem ouvidas, e para os leitores também poderem viver o mundo literário no presente. Quando o tradutor interpreta na tradução, o obra acaba ficando presa num único sentido que o tradutor interpreta, perdendo os seus sentidos infinitos e abertos. Mas como nós estamos tão acostumados a “compreender” o conteúdo, foi difícil eu estar sempre alerta do meu próprio vício de tentar interpretar em vez de traduzir. 

A PISTA: Por fim, o livro foi lançado no Brasil em 2021, em uma época em que o país estava em meio à ascensão de uma força autoritária e extremista. Na sua opinião, por que essa publicação é tão importante para o contexto brasileiro? O que podemos aprender com a obra?

Ji Yun Kim: Bom… quando a gente aprende sobre os acontecimentos históricos horríveis, mesmo que entendamos pela cabeça que foi algo que nós não podemos repetir novamente, é difícil a gente realmente aprender ou entender o que significa aqueles horrores do passado. Porque parece que é uma coisa do passado que não existe mais aqui agora, mesmo que esteja acontecendo na verdade. E a gente acaba repetindo os mesmos erros sem estar ciente de que está repetindo. Isso, acho, pelo menos uma parte, porque o passado permanece no passado não conseguindo atualizar-se no presente.

Mas como eu já mencionei várias vezes, Atos Humanos não deixam os leitores ficarem aliviados no presente, pensando tipo “ufa, que horrores, que raiva. Ainda bem que eu não vivo isso hoje”. E depois de uma semana esquecemos, porque esquecemos o passado histórico que não vivemos. Mas o romance faz do passado o presente, o presente passado. O passado constantemente se atualiza pela leitura do romance e nós verdadeiramente entendemos que os horrores do passado não estão só no passado. Acho que não é o espaço para falar da força autoritária e extremista que vivemos intensamente no Brasil nos últimos anos, mas acho que Atos Humanos talvez possa ajudar a gente entender o verdadeiro sentido da história no presente constante.

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