Livros

“O livro branco”, de Han Kang, é um grito no silêncio

O livro branco

No mês de novembro de 2023, a Editora Todavia lançou sua tradução de “O livro branco”, da autora sul-coreana Han Kang. Conhecida por publicações anteriores como “A Vegetariana” e “Atos Humanos” (confira nossa entrevista com a tradutora aqui), nesse livro, a autora fala intimamente sobre um trauma vivido indiretamente: a morte prematura de sua irmã mais velha, ainda bebê. Mesmo não tendo chegado a conhecê-la, Han Kang colheu muitas dores e angústias desse acontecimento, principalmente por sua relação com a mãe e com a sua própria existência.

O livro branco de Han Kang (Foto: Beatriz Dourado – A Pista Jornal)

O livro é separado em três partes – “Eu”, “Ela” e “Toda a brancura” – e um epílogo – “Palavras da autora”. Dentro de cada parte, estão pequenos trechos com divagações, reflexões e memórias da autora, além de algumas imagens, e todos esses trechos recebem títulos com objetos ou situações que remetem à cor branca. O branco é a cor associada ao luto na Coreia e em outros países asiáticos, por simbolizar a paz, o silêncio e a reflexão. Assim, Han Kang vai tecendo laços entre toda essa brancura e seu luto silencioso.

Por meio desses pequenos fragmentos, a autora retorna diversas vezes ao mesmo momento, cada vez com uma nova roupagem. Há sempre um detalhe, um acontecimento, um olhar, algo que a incita a evocar aquele momento em que sua mãe sussurrou nos ouvidos de sua irmã recém-nascida para que ela não morresse. Sua escrita é uma prosa de estilo cuidadosamente poético, que confere uma sensibilidade e uma suavidade inquietantes.

“Todas as memórias do que passei na vida estão isoladas e seladas junto à minha língua materna, de forma inseparável. Quanto mais teimoso o isolamento, mais vívidas se tornam as memórias inesperadas. E o peso delas se torna ainda mais opressor.”

Han Kang, “O livro branco” (p. 21)

Na primeira parte, a autora escreve em primeira pessoa, enquanto na segunda escreve em terceira pessoa e na terceira parte retorna à escrita em primeira pessoa. Essa mudança pode parecer um pouco brusca a princípio, ainda mais por não saber, como leitora, quem seria esse narrador onisciente da segunda parte. No entanto, a impressão que fica é a de que esse narrador é um recurso para externalizar as impressões sobre si mesma, ou até conferir uma voz para sua irmã falecida – tudo depende da perspectiva de quem lê.

Han Kang nos oferece, página por página, um pensamento. A sensação é a de que vemos o livro sendo escrito enquanto lemos, pois cada passo da autora em sua jornada é narrado em tempo presente, sendo o passado algo constante e repetitivo.

A autora não consegue deixar de pensar em como toda a sua vida só existe por causa daquelas duas horas em que sua irmã viveu. Todos os lugares que vai – da cinzenta Varsóvia até à congelada Seul – deixam um lembrete da morte quase sacrificial de sua irmã. Tudo o que faz, o ar que respira e as paisagens que vê, suscitam o mesmo pensamento: ela morreu para que eu pudesse estar aqui.

Por vezes, o livro cansa, não pela temática, mas devido a algumas divagações prolixas. Ainda assim, há uma beleza na descrição do sofrimento, algo como poesia mesmo, uma escolha de palavras minuciosa que confere harmonia a um acontecimento tão obscuro. A autora sul-coreana é uma mestre da escrita, sabendo causar sensações físicas em seus leitores mesmo estes nunca tendo vivido algo semelhante.

“Penso nela sobrevivendo e se alimentando do leite materno.

Penso na sua respiração persistente e em seus lábios se movendo e sugando o leite.

Penso nela desmamando, crescendo, alimentando-se de mingau de arroz. E depois, mesmo ao se tornar adulta, passando por várias crises, mas sempre as superando.

Penso na morte passando ao lado dela, e ela sempre virando as costas e seguindo em frente.

Não morra. Por favor, não morra.

Porque essas palavras estavam gravadas no seu corpo como um amuleto.”

Han Kang, “O livro branco” (p. 33)

Chegamos até a respirar fundo e engolir seco depois de um trecho desses, e aqui está o poder da autora, em saber passar sua dor de forma tão contundente – sem esquecer, ainda, o incrível trabalho de tradução de Natália T.M. Okabayashi. Identificando-se com a história ou não, é difícil não sentir o impacto dessa leitura.

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