Belchior – “Alucinação”
“Alucinação” foi o segundo disco da carreira do cantor, compositor e poeta Belchior (1946-2017). O álbum, que foi lançado em 1976, tem dez faixas no total e completa 48 anos de seu lançamento em junho de 2024.
O projeto “Alucinação” é um exemplo claro do que se convencionou a chamar de álbum-autoral. Nenhum outro artista poderia ter feito este disco além do próprio Belchior. É evidente sua evolução como artista e letrista quando se compara este trabalho com sua estreia “Belchior” (1974). “Alucinação” tem uma coesão que não é encontrada no disco homônimo, que parece mais uma compilação aleatória de músicas compostas por Belchior em fases distintas de sua vida. Anteriormente o aspecto lírico parecia em estado de desenvolvimento, enquanto no trabalho de 1976 a potência de suas composições é sentida com toda sua força e violência. As temáticas tratadas pelo artista de origem cearense são comuns a todos os membros da geração à que ele pertence – uma juventude desiludida e desesperada – e também à condição de um migrante nordestino tentando a sorte na cidade grande – seja no Rio de Janeiro ou em São Paulo. O contexto político da época em que o disco foi lançado era a ditadura civil-militar inaugurada com o golpe de estado de 1964. Esta circunstância influenciou muito o que era produzido em termos de cultura – a área musical em especial. A juventude foi uma das principais opositoras ao governo militar e o artista natural de Sobral consegue retratar muito bem esse sentimento individual e coletivo de revolta por um lado e desespero por outro que dominava os seus semelhantes.
“Alucinação” é um marco dentro da história da chamada música popular brasileira – tanto por sua sonoridade quanto pela parte temática. A sonoridade é muito original e bebe de influências diversas como o rock, o pop, o blues, a MPB, o country e a música do Nordeste. A diversidade dos instrumentos utilizados no processo de produção do disco, segundo a ficha técnica disponível no Wikipédia, inclui: violão, viola caipira, guitarra elétrica, piano, órgão, sintetizador, harmônica, acordeão, baixo, percussão, pedal steel e bateria.

Belchior estava tentando fazer algo diferente com sua arte e foi feliz neste processo. Ele também estava criticando os artistas de sua geração ao escolher fazer músicas desta forma. Se hoje é comum dois artistas se atacarem em suas composições, como nos mostra a recente briga entre os rappers Kendrick Lamar e Drake, Belchior também pode ser considerado um dos pioneiros desta tradição em terras brasileiras – junto com os sambistas Noel Rosa e Wilson Batista na década de 30.
O compositor critica Caetano Veloso, um dos maiores expoentes da música popular brasileira na época e do tropicalismo, em duas faixas diferentes: “Apenas Um Rapaz Latino Americano” e “Fotografia 3×4“.
Em “Apenas Um Rapaz Latino Americano”, canção que abre o disco e uma das mais conhecidas do artista, ele canta: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio/ Em que um antigo compositor baiano me dizia/ ‘Tudo é divino’/’Tudo é maravilhoso’”.
Neste trecho o artista cearense coloca a arte de Caetano como algo do passado e a si mesmo como o novo. O tema do “novo” se repete durante todo o disco. Os backing vocals utilizados no refrão dão uma sonoridade bem pop e moderna para a composição. A antiga canção do compositor baiano que Belchior se refere é “Alegria, Alegria” de 1967 – faixa integrante do disco homônimo de Caetano Veloso.
O cantor também cita Veloso nominalmente na faixa “Fotografia 3×4”: “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua”. Este trecho fala de uma experiência autobiográfica de Belchior, ele realmente passou um tempo sem ter um lugar fixo para ficar quando saiu do Nordeste para morar no Sudeste. A crítica se refere à mesma música de Caetano citada anteriormente em que Veloso canta que o “O sol é tão bonito”. A letra e a proposta da música teriam um conteúdo escapista para Belchior. Suas letras, ao contrário, têm como objetivo cortarem como faca, irem na carne, é o que ele diz em “A Palo Seco”: “E eu quero é que esse canto torto/ Feito faca/ Corte a carne de vocês”. Chama a atenção o uso do triângulo, instrumento associado com a música nordestina, nesta música que também bebe da influência do rock com o uso da guitarra – esta mistura era uma característica da experimentação musical que Belchior buscava.
Outras duas composições de destaque em “Alucinação” são: “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”. Ambas as músicas foram regravadas por Elis Regina e estão presentes no seu disco “Falso Brilhante” de 1976. Elas se tornaram hinos de uma geração, as letras ecoavam o sentimento de milhões de jovens brasileiros no período.
A letra de “Velha Roupa Colorida” mostra a erudição e Belchior e a conexão com seu tempo: as músicas “Like a Rolling Stone” de Bob Dylan, “Blackbird” dos Beatles e “Assum Preto” de Luiz Gonzaga são citadas. Para complementar seu diálogo com outras artes, ele também utiliza o poema “O Corvo” do escritor norte-americano Edgar Allan Poe como inspiração para construir um dos seus versos. Referências literárias eram comuns em suas músicas, Fernando Pessoa foi citado em “Fotografia 3×4” e João Cabral de Melo Neto foi homenageado em “A Palo Seco” – título de um poema do poeta pernambuco.
Em “Alucinação”, Belchior coloca o público em contato com seu conceito particular de alucinação. Na faixa-título do projeto, ele canta: “A minha alucinação é suportar o dia a dia/ E meu delírio é a experiência com coisas reais”. Toda a proposta do trabalho gira em torno disto e qualquer pessoa sai diferente depois da audição deste disco. É imprescindível embarcar na “Alucinação” de Belchior para entender um pouco mais a mente de um dos maiores artistas da música brasileira e o pensamento que norteou boa parte da revolta da juventude dos anos 60 e 70 – período histórico muito fértil no nível cultural, artístico e político no Brasil e no mundo afora.
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