Cinema

“Saudosa Maloca” mira em Adoniran, mas acerta em comédia genérica sobre São Paulo

Adoniran Barbosa é um coadjuvante da própria história no filme dirigido por Pedro Soffer Serrano

Saudosa Maloca

Saudosa Maloca” (2024), filme baseado livremente nas músicas de Adoniran Barbosa, é um longa dirigido por Pedro Soffer Serrano. Ele já produziu duas obras baseadas na vida de Adoniran, o curta “Dá Licença de Contar” (2015) e o documentário “Adoniran: Meu nome é João Rubinato” (2018).

A história tem duas linhas do tempo: uma com o Adoniran envelhecido, e outra antes da fama. Além de mostrar a trajetória do artista, o elemento em comum entre ambas é a chegada do progresso tecnológico à cidade de São Paulo – esta mudança que, sem pedir licença, atropela as pessoas e os lugares. Sempre há uma obra, algo em construção, que passa por cima de quem estiver na frente. Essas transformações retratadas no longa também são temas das composições de Adoniran, como na própria letra da faixa “Saudosa Maloca”. A história contada nesta música é retratada no filme: a maloca habitada pelos amigos é demolida como o foi na canção.

O ator e músico Paulo Miklos, integrante dos Titãs, interpreta Adoniran Barbosa. É difícil emular a voz única de Adoniran, mas Miklos dá seu toque especial e constrói um Adoniran próprio e bem diferente do original. No imaginário popular (e na mente do autor deste texto também), a figura de Adoniran em que pensamos é sempre de um senhor de idade. Miklos foi envelhecido pela maquiagem, mas seus trejeitos não transparecem a idade que o personagem tem. É difícil se convencer de que o personagem deveria ser uma recriação fictícia de Adoniran, o espectador (ou apenas eu) está condicionado apenas a ver Paulo Miklos em cena. Talvez seja por isso que, nas cenas musicais, sua atuação se destaque, principalmente nas sequências filmadas no bar que frequenta com seus amigos para beber, socializar e cantar.

Cena de "Saudosa Maloca" (Foto: Pink Flamingo Filmes/ Divulgação)
Cena de “Saudosa Maloca” (Foto: Pink Flamingo Filmes/ Divulgação)

O longa começa com um tom caricatural – tanto no cenário do bairro (a maloca, o bar, tudo parece muito artificial), como nos trejeitos das atuações e do texto (que pretende emular a linguagem popular utilizada por Adoniran) – algo que incomoda o espectador desavisado, mas que depois se estabiliza quando ele se acostuma com aquele estilo. As atuações são bem exageradas, principalmente a do italiano Joca, companheiro de maloca do Adoniran. É certo que o tom de caricatura está presente em todas as letras e o jeito de cantar de Barbosa, mas parece algo natural quando se ouve na sua voz. O filme quer homenagear esse estilo do cantor, mas o resultado não é muito feliz. É mesmo muito difícil simplesmente transpor uma característica pessoal que funciona muito bem em um determinado meio (a música) para outro que tem qualidades próprias, apesar de semelhantes, como o cinema.

A atuação de Gustavo Machado como Joca melhora quando ela é combinada com a performance de Gero Camilo como Matogrosso, outro amigo e companheiro de maloca do Adoniran. Os dois se envolvem em muitas confusões quando estão juntos e, além disso, compartilham um interesse amoroso em comum: Iracema, uma mulher negra e dona do bar que todos frequentam para beber e cantar seu samba, vivida pela atriz Leilah Moreno.  

A conexão de ambos funciona tão bem que os espectadores (e o diretor também) quase esquecem da presença de Adoniran. Este não é um ponto negativo por si só, pois suas interações são os momentos mais cômicos do filme. Todos estes personagens e os principais acontecimentos do longa estão presentes nas letras de Adoniran Barbosa.

Há muitas referências às letras do Adoniran nos diálogos, e a cada hora sai da boca de um personagem diferente uma frase que pertence a suas composições. Isso mostra como o samba é uma construção coletiva do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, esse recurso parece muito manjado e o diretor carrega muito nos acenos ao público.

Chama bastante a atenção o uso do cinza na fotografia do longa. Cinza é uma das cores mais associadas a São Paulo, ela está presente nas ruas, nos prédios e no próprio céu – tanto no mundo real quanto no mundo fílmico. Com a chegada do “progresso” em “Saudosa Maloca”, a cidade fica mais cinza ainda, isto é evidente na linha do tempo com o Barbosa mais envelhecido, em que os tons de cinza estão mais destacados. É quase como se a cor cinza fosse um personagem do filme ou um traço da personalidade de SP.

Em “Saudosa Maloca”, Pedro Soffer Serrano quer dar vida aos personagens presentes no universo ficcional da música do sambista paulista e retratar uma São Paulo que não existe mais. É uma iniciativa louvável na teoria, mas o filme não consegue capturar a magnitude e a importância de Adoniran Barbosa para a história da música brasileira durante este processo. Quem já conhecia a história de Adoniran através de suas músicas não conhece tanta coisa diferente. Os destaques do longa ficam pelas performances de Gustavo Machado e Gero Camilo como Joca e Matogrosso, respectivamente, e as cenas de roda de samba lideradas pelo carisma de Paulo Miklos. O espectador talvez desfrute mais da experiência se encarar o filme menos como uma biografia de Adoniran e mais como uma compilação de crônicas sobre personagens ordinários de uma São Paulo antiga – que também pode ser encarada como um personagem.

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