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Podcast “Segurança dos Direitos” propõe visão crítica em relação ao conceito de segurança pública

“Não vemos a “segurança pública” como um fim em si mesmo e renegamos essa ideia de que seja possível abraçar uma política pública de segurança, sem que isso importe em ferimento a direitos fundamentais, estes sim concretos e objetivamente apreciáveis”, comenta Rafael Borges — criador do podcast Segurança dos Direitos

Logo do podcast Segurança dos Direitos

A Pista entrevistou Rafael Borges, advogado criminalista e criador do podcast semanal “Segurança dos Direitos”. O projeto visa fornecer uma visão crítica sobre o debate corrente em relação ao tema da chamada segurança pública e refletir sobre o próprio conceito de segurança a partir de outros olhares.

O programa também conta ocasionalmente com a presença de convidados que são referências em suas respectivas áreas como Maria Lúcia Karam (juíza de direito aposentada), Nilo Batista (advogado e professor de direito penal brasileiro) e Vera Malaguti Batista (socióloga e pesquisadora da questão criminal no Brasil) nas suas discussões.

Por e-mail, Rafael falou sobre como surgiu a ideia para o nome do podcast, o que o levou à assumir um viés crítico em relação à justiça criminal, a presença do punitivismo na sociedade brasileira e também de abolicionismo penal — temas recorrentes nos episódios do “Segurança dos Direitos”.

A Pista: O que fez você adquirir uma visão crítica do direito e do sistema penal?

Rafael Borges: Em primeiro lugar, as influências na Universidade, onde tive contato com os Professores Nilo Batista, Juarez Tavares, Vera Malaguti Batista, entre outros pensadores críticos da questão criminal. Essas aulas me levaram a outros autores, como Raul Zaffaroni e Lola Anyar de Castro, igualmente críticos, e assim sucessivamente. A produção intelectual latino-americana sobre o assunto é riquíssima e estimulante. Temos muito a aprender na região. Em segundo lugar, a militância política, que sempre convocou a minha formação acadêmica para o terreno das transformações sociais. Com essa pré-disposição, foi possível compreender o direito, principalmente o penal, desde sempre, como instrumento facilitador dos processos de acumulação de capital e neutralização dos indesejáveis; daquelas pessoas que, por não ostentarem padrões de consumo relevantes, precisam ser encarceradas ou eliminadas do convício social. Assim, a reunião dessas dimensões — acadêmica e política — impuseram a mim visões absolutamente críticas, vinculadas à necessidade permanente de conter o exercício do poder punitivo, mitigar os efeitos do estado policial e promover o estado de direito.

AP: Como surgiu a ideia de criar o podcast Segurança dos Direitos e qual a origem do nome? Sei que vocês explicam a origem do termo em um dos episódios, mas poderiam esclarecer isso para os nossos leitores?

Rafael Borges: O nome do podcast advém de uma reflexão sobre o tema — “segurança pública” — levada a efeito, originalmente, por Alessandro Baratta, mas que acabou ganhando terreno fértil também nas reflexões de Joel Rufino dos Santos, Nilo Batista e Vera Malaguti Batista. Essa crítica foi completamente internalizada por nós no podcast — que hoje é tocado por mim e também pelos queridíssimos professores e amigos do INTROCRIM. Não vemos a “segurança pública” como um fim em si mesmo e renegamos essa ideia de que seja possível abraçar uma política pública de segurança, sem que isso importe em ferimento a direitos fundamentais, estes sim concretos e objetivamente apreciáveis. Para aqueles autores, a segurança deve ser entendida como a relação, objetiva ou subjetiva, que os sujeitos possuem com a estabilidade dos meios de acesso a suas necessidades. Dessa forma, em muitos casos, a segurança não passa de um sentimento, que, certamente, não pode ser objeto de tutela jurídica. Nesse contexto, é possível afirmar que o que deve ser tutelado juridicamente são as necessidades humanas (vida, liberdade, integridade física, honra, patrimônio, etc.) e os seus meios de acesso. Agora, o sentimento de estabilidade em relação à possibilidade de satisfação das necessidades ou aos instrumentos para atingi-las não pode ser considerado direito. Ainda mais se, para proteger o sentimento, seja necessário restringir um direito real, como liberdade, igualdade, dignidade, etc.

O Prof. Nilo Batista também tem uma reflexão muito boa, que está num texto dele, chamado “Criminologia sem Segurança Pública”. Ali ele nos adverte para a maleabilidade dessa palavra — segurança — e para todos os sobrenomes que ela já ostentou: cidadão, pública, jurídica, biológica, nacional… Já serviu a vários senhores; sempre com propósitos manifestamente políticos e nem sempre tão nobres assim. Baratta percebeu que a concepção de um direito fundamental à segurança representa o resultado de “uma construção constitucional falsa ou perversa”: falsa porque, se significasse a garantia de todos os direitos de todos os cidadãos, seria melhor enunciada como segurança dos direitos ao invés de um vazio direito à segurança; perversa, porque nas sociedades de classes, a garantia dos direitos de certas pessoas geralmente se empreende às custas de severas violações a direitos de outras.

A ideia, portanto, foi criar um podcast que adotasse como premissa esta concepção crítica da expressão “segurança pública”.

AP: O abolicionismo penal é um tema recorrente no podcast. Você poderia falar um pouco sobre esse conceito para as pessoas que não tem familiaridade com o tema e como ele se relaciona com o contexto penal brasileiro?

Rafael Borges: O abolicionismo permeia nossas reflexões, sempre, mas é preciso esclarecer que não se trata de uma teoria propriamente dita, senão de um movimento que propõe, em linhas bem gerais, a abolição do sistema de justiça criminal, sugerindo a adoção de meios alternativos para a solução de conflitos. O abolicionismo parte do pressuposto — óbvio e ululante — de que o sistema de justiça criminal só serve a propósitos inconfessáveis, como produção de encarceramento em massa e viabilização da necropolítica. O contexto penal brasileiro é especialmente perturbador, servindo de forma bastante consistente a esses propósitos. Pretendemos, com o debate sobre o abolicionismo, fazer a crítica ao sistema de justiça criminal, deixando claro que não se trata de algo dado ou “natural”. É uma construção histórica e política que atende perfeitamente bem às demandas dos processos de acumulação de capital. Pensar na abolição desse sistema significa pensar numa realidade completamente diferente, que não seja refém de uma estrutura judiciária que funciona apenas na perspectiva de prender e neutralizar. O abolicionismo recoloca no centro do debate político (em sentido amplo) a relação entre pena e capitalismo, estimulando uma tomada de posição que vislumbre outros horizontes e, por isso mesmo, outras estratégias para o convívio em sociedade.

AP: Qual a conexão da cultura do castigo com o punitivismo presente em parte da sociedade brasileira? Ela também tem relação com o autoritarismo que permeia a história da formação do Brasil como Estado-Nação?

Rafael Borges: A cultura do castigo confere sustentação simbólica ao punitivismo. A ideia de que o castigo é uma espécie de “resposta natural” à conduta desviante parece autorizar que o Estado também institucionalize uma resposta oficial à prática do crime, que por vezes vem na forma de privação da liberdade. O “direito ao castigo” está na base das tentativas de justificação da própria pena. Imagina-se que o temor da cadeia ou de uma resposta estatal à conduta criminosa possua aptidão para inibir a prática de delitos. Isso nunca foi demonstrado empírica ou estatisticamente, mas segue orientando a formulação de políticas públicas em matéria penal. E sim: há uma relação estreita entre essa cultura e o autoritarismo; tanto o autoritarismo estatal, que formata o estado policial brasileiro e produz todas as suas consequências mais lesivas e cruéis, quanto o autoritarismo social, que está na origem, por exemplo, dos crimes sexuais, da violência de gênero e de tantos outros atos desviantes.

AP: Como democratizar o debate sobre a importância do conhecimento dos direitos das pessoas e suas possíveis limitações para um público leigo?

Rafael Borges: Pergunta difícil. A comunicação de temas mais ou menos complexos, que às vezes exigem leitura prévia e contextualização, para o público leigo, é tarefa das mais árduas. O podcast não é exatamente voltado ao público leigo, mas há um compromisso nosso de encontrar o maior didatismo possível. O debate sobre a questão criminal, por sua relação íntima com o processo político e as demandas do regime econômico vigente, recebe informações e influências de diversos atores. Esses atores disputam uma narrativa, construída a partir de seus próprios interesses, muitas vezes sem rigor acadêmico ou crítico. A necessidade de ser didático e comunicativo tem a ver com esse ambiente conflitado. É preciso saber informar e comunicar as razões da falência do sistema de justiça criminal, a falência da pena de prisão e suas funções latentes. É preciso envolver o público leigo nesse debate, sempre na perspectiva de produzir esclarecimento e de fortalecer o nosso campo, no sentido político do termo.

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