Assassinos da Lua das Flores
No começo de “Assassinos da Lua das Flores”, Martin Scorsese constrói uma narrativa que parece sair do campo da ficção científica, principalmente quando pensamos na história do cinema hollywoodiano e sua tradição de silenciamento de narrativas de pessoas não brancas. O enredo mostra como os indígenas da nação Osage descobriram petróleo em suas terras e, com isso, mudaram completamente seu status na sociedade norte-americana dos anos 1920. Eles agora fazem parte de uma elite dentro dos EUA e têm até funcionários brancos a sua disposição.
Por incrível que pareça, esta não é uma história ficcional; o roteiro se baseou no livro de não ficção homônimo escrito pelo jornalista norte-americano David Grann. É difícil definir o gênero deste filme; há elementos do faroeste, do filme policial/gângster e também de drama. O faroeste — o gênero cinematográfico norte-americano por excelência, segundo o crítico francês André Bazin — é um dos estilos cinematográficos favoritos de Scorsese. Ele não se cansa de elogiar os filmes de John Ford, Howard Hawks e outros autores importantes da história do cinema nas muitas entrevistas que deu durante os anos. O conflito civilização x barbárie, lei e ordem x caos é uma tônica das obras desse gênero, e este também é o caso desse trabalho.
Dá até para comparar, em alguns aspectos, este filme de 2023 com “Crepúsculo de uma Raça” (1964), o faroeste revisionista de John Ford, feito no fim de sua longa carreira. Este trabalho de Ford tem uma perspectiva bem diferente de seus filmes anteriores, que têm o homem branco como o protagonista. Em ambos os casos, o povo indígena, sua história e seu sofrimento estão sob o holofote.

O cinema de Martin Scorsese
“Assassinos da Lua das Flores” passa pouco tempo mostrando o progresso e a riqueza do povo Osage. Ao contrário de trabalhos anteriores do cineasta, como “Os Bons Companheiros” (1990), “Cassino” (1995) e “O Lobo de Wall Street” (2013), Martin escolhe não mostrar esta riqueza de uma forma ostensiva. O que está em foco no longa é a destruição deste grupo de pessoas pelo homem branco – o principal arquiteto desta catástrofe é William Hale, personagem vivido por Robert De Niro, frequente colaborador de Scorsese. Ele é o manda-chuva da região em que os Osage vivem e quase nada acontece sem sua permissão. Outro homem responsável por este projeto de pilhagem é Ernest Buckhart, sobrinho de William, personagem vivido por Leonardo DiCaprio. Ele trabalha para o tio e não tem problema em fazer o trabalho sujo que seu familiar exige.
De Niro e DiCaprio trabalharam em vários clássicos da filmografia de Martin Scorsese. Eles sempre viveram homens complexos e de moral dúbia, mas neste novo longa eles são vilões de uma forma mais direta e inédita no trabalho do diretor.
Scorsese sempre se preocupou em mostrar o outro lado da história oficial. Vários personagens seus são marginalizados pela sociedade, gângsteres, bandidos, que mesmo assim se mostram como parte intrínseca da formação dos EUA quando olhamos com mais cuidado para os filmes do cineasta – a corrupção e a violência parecem estar na origem e no meio de todas as instituições norte-americanas.
Mais uma vez, esta é a tônica de um filme do cineasta nova-iorquino. Martin é generoso com os indígenas, humaniza-os [historicamente seu tratamento foi desumanizante tanto pelo cinema quanto pela sociedade norte-americana], não os trata como seres unidimensionais e caricatos, mas a perspectiva principal do longa ainda parece ser a do homem branco. O olhar se torna mais documental quando ele quer retratar os nativo-americanos. Scorsese sabe que sempre vai ter algo naquela sensibilidade que está fora do seu alcance e de compreensão, mas é seu dever registrá-lo. Mollie e o povo Osage em geral não são pessoas que costumam expressar tudo por meio de palavras – pelo menos esta é a tônica do universo retratado neste longa. Entre os indígenas representados no filme, Lily Gladstone (que vive a personagem de Mollie Buckhart) é a que mais se destaca durante seu tempo de tela e consegue rivalizar em atenção mesmo contracenando com lendas do cinema mundial como De Niro e DiCaprio.
Outro elemento importante que merece um olhar mais atento é a retratação da violência. A violência é um elemento importantíssimo quando se pensa no cinema de Martin Scorsese. Essa violência e a sua representação na tela também mudaram bastante no cinema do Scorsese com o tempo. A violência estilizada e por vezes até celebrada que está presente em filmes como “Taxi Driver” (1976), “Os Bons Companheiros” (1990) e “Cassino” (1995) é bastante diferente da violência de “Assassinos da Lua das Flores”. O retrato do genocídio dos Osage não é estilizado de uma forma apelativa como poderia ser com outros tipos de diretores ou até pelo próprio Scorsese em outra fase de sua carreira e da sua vida.
A fotografia com uso de cores mais neutras enfatiza a falta de beleza e de vida daquele ambiente. A única beleza e destaque vindo das cores é quando a natureza ou a indumentária indígena são mostradas. É como se o mundo supostamente civilizado estivesse desbotando e fosse algo decadente em si. É uma fotografia que quer ser realista/documental quando retrata os brancos, mas se permite ser mais expressionista para mostrar o outro (o não-branco, indígena, o outro possível). Os indígenas e a natureza são a vida, o homem branco e seu suposto progresso são a morte. Apesar disso, quem está sendo morto nesta história são os indígenas e a fotografia parece evidenciar isso. Uma das cenas mais bonitas acontece após a morte da mãe da personagem de Mollie, em que Scorsese recria uma imagem que remete ao que os indígenas acreditam que acontece quando chega a hora de alguém morrer. Descrever a cena aqui não faria justiça à sua beleza.
Um ritmo mais contemplativo e lento que o Scorsese vem seguindo desde “O Silêncio” (2016) e “O Irlandês” (2019) também está presente em “Assassinos da Lua das Flores”. Apesar disso, as quase 3h30 de filme não pesam tanto quanto o espectador comum poderia esperar. O mérito é da editora Thelma Shoonmaker, outra frequente colaboradora do diretor, que trabalhou com ele em quase toda a sua filmografia. O diretor transita muito bem entre vários estilos dentro do próprio filme. Ao contrário do recente “Oppenheimer” (2023) de Christopher Nolan, quando o filme vira um filme de tribunal, ele não perde força, mas ganha mais ainda. Em “Assassinos da Lua das Flores“, Martin Scorsese mostra a todos que ele não cansa nunca de se reinventar e se questionar, mesmo com 80 anos de idade nas costas [sua idade enquanto filmava o longa, ele completou 81 anos em novembro de 2023].
Siga A Pista em todas as redes sociais (Facebook, Twitter e Instagram) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, TV e música!
Leia também:
“Folhas de Outono”: Encontros e desencontros de um amor em meio à crise

