Cinema

“Dias Perfeitos” de Wim Wenders: uma reflexão a respeito do cotidiano 

Registro da cabine presencial da exibição do filme "Dias Perfeitos" de Wim Wenders
Registro da cabine presencial da exibição do filme “Dias Perfeitos” de Wim Wenders (Foto: Martina Paredes)

Dias Perfeitos

É possível levar uma vida tranquila apesar da repetição cotidiana? Talvez esse seja um dos primeiros questionamentos que toma o espectador do longa japonês, Dias Perfeitos“, filme de Wim Wenders, diretor do também aclamado “Asas do Desejo” (1987) e agora indicado na categoria de melhor filme no Oscar de 2024

Em Dias Perfeitos, acompanhamos os desdobramentos do cotidiano taciturno de Hirayama, um homem que vive sozinho em um sobrado nos arredores de Tóquio e que divide seu tempo de forma metódica entre trabalho, um simples almoço, jardinagem, banho em um sentō (as tradicionais casas de banho públicas do Japão) e outras ações cotidianas e, aparentemente, banais. 

Acompanhamos por algum tempo do filme o ciclo vicioso do cotidiano de Hirayama que, para muitos de nós, consiste em bastante monotonia. Apesar disso, o cotidiano de Hirayama não apresenta dias perfeitamente iguais, bem como Heráclito de Éfeso apontou que não é possível entrar duas vezes no rio, já que as águas se renovam e o homem também já não é mais o mesmo. 

Dessa forma, felizmente, somos convidados pelo destino a seguir o protagonista e  se aventurar pela presença do acaso e de pequenos acontecimentos que causam estranhamento, mas ao mesmo tempo reflexão e curiosidade. Com o cotidiano atravessado por personagens comuns, como um colega de trabalho irresponsável, ou incomuns, como um idoso peculiar performático, Hirayama vive um ensaio do cotidiano que acomete a todos nós.

Para além da repetição cotidiana de suas ações, tal um Sísifo moderno rolando sua pedra montanha acima, visualizamos a vida que Hirayama leva a começar por seu emprego, que consiste em lavar banheiros públicos. Percebemos que apesar de parecer ser monótono diariamente limpar banheiros e, literalmente, a sujeira alheia, o protagonista trabalha com o hábito de contemplação da natureza. Isso fica nítido quando ele realiza sua pausa para almoço e se dirige até uma espécie de praça arborizada, senta-se em um banco, mordisca seu pão e levanta os olhos para a copa das árvores ali presentes que são tocadas pela luz solar. Daí, saca uma modesta câmera analógica e fotografa a natureza ali, preservando e eternizando o momento. 

Mas, afinal, o que ele busca nela? Conforto, escape ou acolhimento? Antes de mais nada, para refletir sobre isso, podemos pensar no shinrin-yoku, um tipo de terapia ou técnica japonesa que consiste em tomar um “banho de natureza”. Dessa forma, a ideia é entrar em uma floresta ou em um bosque e se deixar levar pelos sons naturais do ambiente, como o canto dos pássaros e dos insetos, por exemplo. E, apesar de Hirayama viver em uma grande metrópole como Tóquio, é interessante notar como ele consegue de alguma forma se manter conectado à natureza. 

Outro aspecto que chama a atenção é que, em uma das cenas cotidianas, antes de entrar na praça, Hirayama passa por um torii, uma espécie de portal que indica a entrada de um âmbito budista ou xintoísta e sinaliza uma  passagem para deuses. Antes de atravessar o torii, Hirayama realiza a ação de se curvar, um gesto japonês conhecido como ojigi e geralmente é usado para mostrar respeito ou reverência. O mesmo gesto de reverência é realizado pelo protagonista, logo após fazer sua habitual ação cotidiana de contemplar a copa das árvores. 

Por mais banais e singelos que sejam as ações cotidianas de Hirayama, podemos pensar que tudo possui um sentido para o protagonista e que nada é feito de forma vazia. Hirayama preenche com gestos e olhares plácidos aquilo que enxergamos como o vazio cotidiano, aproveitando cada ato e cada gesto, realizando o exercício, à risca, de um verdadeiro carpe diem, expressão latina que traz  a ideia de aproveitar o dia em sua tradução. 

O silêncio do mundo introvertido de Hirayama, que preenche o filme ao longo dos seus 125 minutos, é intercalado com a playlist de músicas diárias dele que pincelam um toque característico e específico à trama. O que não é verbalizado pelo protagonista durante a narrativa, é ocupado por músicas diversas, clássicos das décadas de 60 e 70, com destaque especial para a música de abertura House Of The Rising Sun Song da banda The Animals, Perfect Day de Lou Reed e que dialoga bem com o título do próprio filme e Feeling Good de Nina Simone. 

Apesar de parecer simplista, Perfect Days possui sua beleza e notoriedade. Tomando o cotidiano como pano de fundo de sua história, Wenders nos revela a sensibilidade que viver exige e que por vezes, nos descuidamos de cuidar e, por que não, aproveitar? É claro que nem tudo são flores e percebemos que Hirayama não possui a vida mais tranquila que alguém possa ter. No entanto, o filme tem a força de nos fazer pensar: o que é uma vida tranquila? Certamente as intempéries do cotidiano capitalista nos tiram a capacidade de refletir a respeito disso com maior frequência, uma vez que o trabalho e preocupações financeiras, comprometem grande parte de nosso tempo vivendo o cotidiano. Mas, por sorte, a arte nos auxilia nesse estudo. 

Você pode conferir “Dias Perfeitos nos cinemas a partir do dia 29 de fevereiro de 2024 e em breve na plataforma da MUBI.

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