
Enterre seus mortos
Neste livro com características de terror e suspense, nos é apresentado um cenário desolado em que há uma constante presença da morte e a lembrança de que esse é o destino inevitável de todo ser vivo. A obra foi escrita por Ana Paula Maia e venceu a categoria de Melhor Romance do Ano no Prêmio São Paulo de Literatura no ano de 2018. Além desse livro, a autora também conquistou o mesmo prêmio no ano seguinte, com a obra “Assim na Terra como embaixo da Terra”.
Na trama de “Enterre Seus Mortos” temos uma narrativa em terceira pessoa e acompanhamos o cotidiano pacato e soturno de Edgar Wilson, um homem que trabalha recolhendo corpos de animais mortos ao longo de estradas e rodovias de um lugar aparentemente perto de lugar nenhum.
Grandes ou pequenos, os cadáveres são recolhidos e levados a um moedor, onde são triturados e reduzidos a uma massa condensada que, posteriormente, é usada na fertilização do solo. Embora recolher os cadáveres seja um trabalho difícil, o que Edgar Wilson realiza é de suma importância para garantir o bom funcionamento das estradas e evitar acidentes.
Por sorte, ele não realiza o trabalho sozinho, mesmo que na maior parte do romance esteja só. Em determinado momento, nos deparamos com outro personagem, Tomás, um padre excomungado da Igreja Católica, que assim como Edgar, é um homem de poucas palavras e com um ar misterioso, como de alguém que carrega um segredo obscuro dentro de si, o que aguça nossa curiosidade a seu respeito.
Ainda que viva em um local ermo e sem muito movimento – algo no estilo do filme “Bacurau” (2019) – nosso protagonista se depara com a violência crua após localizar os cadáveres de uma mulher e de um homem, ambos abandonados e largados à própria sorte no meio do nada, o que inevitavelmente gera o questionamento e a pulga atrás da orelha: seriam esses cadáveres resultados de assassinatos? E, em caso afirmativo, quais seriam os motivos por trás disso? Há motivos?
A partir disso, Edgar Wilson, que antes restringia-se apenas ao recolhimento de animais mortos, passa também a carregar cadáveres humanos em sua caminhonete. Por mais delicada e hostil que seja a situação, ele se nega a abandonar os cadáveres em seus respectivos locais de desova.
De alguma forma, o protagonista demonstra preocupação com isso: “(…) Mas diante dos mortos, seja humano, seja animal, ele não se mantém insensível. Não existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixá-lo ao relento, às aves carniceiras, à vista alheia” (p. 59).
Sendo assim, passamos a acompanhar o empenho de Edgar em dar um fim digno aos humanos, visando, quem sabe, a possibilidade de serem enterrados da devida maneira.
É possível notar que Edgar não se preocupa apenas por obrigação moral com os mortos que encontra em seu caminho. Com a descoberta dos cadáveres há uma reflexão de seus próprios medos e angústias: “(…) Só uma coisa realmente o apavora: morrer sozinho e ser deixado para trás. O medo da própria destruição é inato a todo animal. O medo de Edgar vai além: é esse medo de ser devorado por abutres, comido ao ar livre por vermes necrófagos, de ter sua carne exposta ao vexame” (p. 88).
A princípio, “Enterre seus mortos” aparenta ser um romance com características de um suspense policial banal, mas que surpreende à medida em que revela um cenário realista da violência cotidiana e que podemos ter contato a qualquer momento por meio de notícias de jornal, por exemplo. Edgar Wilson encara a realidade nua e a desbanaliza a partir do momento em que pensa que não gostaria de ser largado à própria sorte como os cadáveres humanos que encontra em seu caminho.
A obra atualmente está em processo de adaptação para às telas do cinema e contará com a presença de Selton Mello e Marjorie Estiano no elenco. A direção fica por conta de Marco Dutra. No momento, ainda não possui data de estreia.
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