O escritor Fiódor Dostoiévski (1821–1881) completa neste ano de 2021 seu bicentenário. O autor russo ficou conhecido na literatura mundial por seus romances que buscavam explorar a densidade psicológica dos personagens, por vezes atormentados e febris — como o culpado Raskolnikóv em “Crime e Castigo” (1866) e o “parricida” Dmitri Karamazov em “Os Irmãos Karamázov”(1880).
A Pista convidou novamente para uma conversa a Professora de Literatura e Língua Russa da USP, Elena Vássina, para falarmos a respeito de Dostoiévski. Questionada sobre a prosa e o conteúdo dos romances do autor, ela comenta:
“A popularidade imensa de Dostoiévski se deve muito ao que ele coloca no centro de suas obras, como todas as questões eternas e malditas de nossa existência, ou seja, no centro da criação de Dostoiévski sempre está a análise, profundidades, abismos e questões da nossa natureza.
Ele é muito humano e ao mesmo tempo a gente pode dizer que o universo artístico de Dostoiévski é antropocêntrico. Ou seja, é universal, humano e muito atual.”
As características primordiais que permeiam as principais obras do autor, se devem muito à sua conturbada vida e também às experienciais traumáticas que vivenciou: mais especificamente em 1849, Dostoiévski foi preso por sua participação no grupo de intelectuais revolucionários e anti-czaristas, denominado Círculo Petrashevski.
Ele e seus companheiros foram condenados a pena capital por fuzilamento a mando do Czar Nicolau I. No dia 22 de Dezembro, Dostoiévski e os membros do Círculo foram encaminhados para a Praça Siemiônovski, em São Petesburgo, para a execução. Entretanto, no último minuto — quando já estavam todos devidamente apostos e alinhados e a sentença devidamente lida — o Czar deu a ordem oficial para que a execução fosse interrompida e comutada por prisão e trabalhos forçados na Sibéria, na qual o escritor permaneceu durante 4 anos.

Essa situação limítrofe da consciência de morte provocou uma mudança radical tanto na vida quanto na obra de Dostoiévski. O autor passou a discorrer de uma forma mais pungente, assuntos de origem filosófica, religiosa e psicológica — pois embora a psicanálise não fora fundamentada na época, o autor precedeu alguns conceitos-chave do estudo, não só em obra mas também em sua vida pessoal, que foram brevemente mencionados pelo pai da psicanálise em “Dostoiévski e o Parrícidio” (Sigmund Freud, 1928). Seus personagens vivenciavam o limite de seus delírios pessoais, condições miseráveis ou convicções de uma fé absoluta.
“Dostoiévski na época era bem jovem (…) ele tinha apenas 28 anos de idade e já estava passando por essa experiência profunda e certamente existencial. As últimas palavra de Dostoiévski antes do que ele achava que seria os últimos minutos de sua vida, ele falou em francês ao seu amigo: ‘Daqui a pouco estaremos com Jesus‘. Segundo ele, foi uma vivência religiosa muito profunda; sua fé passou pelo ‘fogo das dúvidas’, para fundição de dúvidas”, pondera a Professora.
Dita pelos leitores como fase “pós-siberiana” — no retorno do autor a São Petesburgo em 1854 — foi quando Dostoiévski desenvolveu seus livros de maior fôlego, cultuados e estudados até hoje no ramo literário. Além dos já citados anteriormente ainda temos os livros: “O Idiota” (1869), “Os Demônios” (1872) e “O adolescente” (1875). Nos capítulos seguintes deste texto atentemos especialmente a alguns aspectos que fundamentam duas obras desta fase:
A Síntese de “Os Irmãos Karamázov”
O romance “Os Irmãos Karamázov” foi o último livro escrito por Fiódor Dostoiévski e nele se reúnem todos os debates que permeiam a obra Dostoiévskiana, como se fosse um grande apanhado de tudo que o autor havia escrito até então. Assuntos como religião, niilismo, morte e conflitos inerentes à condição humana estão estritamente contidos na obra, assim como complementa a Professora Elena Vássina:
“Sintético é o gênero desse romance antes de mais nada: podemos dizer que é um romance familiar, um romance de suspense – pois aqui acontece um crime, um parricídio, o pai da família é assassinado. Esse romance já foi chamado muitas vezes de ‘romance tragédia’ (…) ou seja, ele na segunda metade do século XIX faz voltar o gênero trágico que era próprio das tragédias da Grécia e da Roma Antiga.
É um romance psicológico, ideológico, filosófico e também um romance polifônico – um conceito que foi elaborado pelo grande teórico literário, filósofo russo e estudioso da obra de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin. Ou seja, é um romance de ideias, de diferentes vozes.”
No livro somos apresentados a família Karamázov, composta pelos irmãos: Dmitri (o atormentado e suposto parricida), Ivan (o ateu e niilista) e Alexei (o espirituoso e bondoso); além do pai de mesmo nome do escritor, Fiódor Dostoiévski. Os conflitos já esperados entre os personagens devido às suas diferenças, somado a um delirante episódio que resulta em um misterioso assassinato, são os pontos regentes da obra, na qual se sobressai a polifonia (definição já mencionada anteriormente) e a forte representação de ideias em cada personagem.

Em uma das passagens mais marcantes do livro, que foi posteriormente publicada avulsamente como um conto denominado “O Grande Inquisidor” (Contos Reunidos, Fiódor Dostoiévski — Editora 34), os irmãos Ivan e Alexei Karamazov conversam a respeito de um poema sobre uma determinada situação imaginada por Ivan — personagem responsável pela famosa fala “Se Deus não existe tudo é permitido”, afirmação essa, que ainda é/foi bastante reproduzida e discutida no ramo filosófico por autores como Albert Camus, Friedrich Nietzsche, entre outros.
O poema de Ivan lida com a situação hipotética do retorno de Cristo na época da Inquisição. Nesse contexto, Jesus é hostilizado pelo povo e preso a mando dos Inquisidores e, por meio do monólogo de um deles ao confrontar Jesus em sua cela, Ivan tece sua crítica à falsa e enganosa fé de uma instituição e à hipocrisia religiosa de seus fiéis, que colocaram a disposição a liberdade sacrificada por Jesus Cristo no deserto.
“Não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se. Mas o homem procura sujeitar-se ao que já é irrefutável, e irrefutável a tal ponto que de uma hora para outra todos os homens aceitam uma sujeição universal a isso. Porque a preocupação dessas criaturas deploráveis não consiste apenas em encontrar aquilo a que eu ou outra pessoa deve sujeitar-se, mas em encontrar algo em que todos acreditem e a que se sujeitem, e que sejam forçosamente todos juntos.”
O Grande Inquisidor, Fiódor Dostoiévski.
Com esse conto, a Professora Elena Vássina reitera que o “texto ideia” desempenha um papel imenso na obra de Dostoiévski, sendo esse mesmo o exemplo perfeito para tal demonstração. Essa passagem também é ótima para exemplificar o antagonismo dos personagens e evidenciar a oposição ideológica entre eles, sendo que o ouvinte de Ivan, Alexei Karamázov, é a representação perfeita do ideal cristão ortodoxo da época.
O Homem Bom em “O Idiota”

No romance “O Idiota”, Dostoiévski nos apresenta o Príncipe Lev Nikoláievitch Míchkin (ou Príncipe Michkin), um personagem perfeito em sua concepção: uma moral incontestável, uma bondade excessiva e uma compaixão cega e desmedida ao próximo, tal qual a imagem de Cristo, como exemplifica Elena Vássina:
“O Príncipe Michkin para Dostoiévski era o “Príncipe Jesus”, nos rascunhos ele escrevia assim: ‘Eu quero escrever um Romance sobre um Príncipe Jesus‘, ou seja, é um personagem absolutamente belo, como o próprio Dostoiévski o definia. E esse personagem vem ao mundo e no final das contas é derrotado, o bem e o amor absoluto não conseguem sobreviver no mundo de Dostoiévski.”, explica a Professora.
Na figura do Príncipe temos a personificação da bondade e da compreensão incondicional, frente a personagens que o tratam de forma ostensiva e que reproduzem em sua essência imperfeições deploráveis inerentes a humanidade, como a ganância, inveja, traição, pessimismo e outros males. Tais personagens contrapõem diretamente com a figura de nosso protagonista, que mesmo com suas qualidades é incompreendido — tido como um Idiota — na tentativa falha de conciliar todas as situações ao seu redor.
Outra peculiaridade do livro é que o autor retoma a discussão sobre a pena de morte, expondo sua visão e romantizando por meio do “texto ideológico” alguns trechos e diálogos do episódio que vivenciou:
“Traga um soldado, coloque-o diante um canhão em uma batalha e atire nele, ele ainda vai continuar tendo esperança, mas leia para esse mesmo soldado uma sentença como certeza, e ele vai enlouquecer ou começar a chorar. Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil? Pode ser que exista um homem a quem leram uma sentença, deixaram que sofresse, e depois disseram: ‘Vá embora, foste perdoado’.”
O Idiota, Fiódor Dostoiévski
O escritor tomou como inspiração e referenciou diretamente o livro “O último dia de Um Condenado” (1829) de Vitor Hugo para sustentar sua argumentação, que era claramente oposta à pena capital. Além desse traço autobiográfico, o Príncipe Michkin também carrega o fato de sofrer de epilepsia: a mesma condição que afligiu o autor durante sua vida. A doença proporcionou a Dostoiévski escrever largas descrições de sintomas e aflições que uma pessoa epiléptica “no limiar do próprio ataque” sofre — material de grande relevância psicanalítica (Dostoiévski e o Parrícidio, Sigmund Freud —1928).
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