Livros

“Tudo é rio” e suas relações caudalosas – uma resenha

O livro “Tudo é rio” de Carla Madeira

“Tudo é rio” – Carla Madeira

Um dos livros mais vendidos e prestigiados dos últimos tempos, “Tudo é rio” marca a estreia de Carla Madeira como escritora e que, por meio da obra, nos apresenta relações conturbadas e permeadas pelos mais complexos tipos de sentimentos humanos, como a raiva, o ciúmes, o desejo, a crença, o luto e o remorso. 

Dessa forma, acompanhamos a história do casal, Dalva e Venâncio, constituintes de uma história de amor que passa do céu ao inferno e é entrecortada por Lucy, uma prostituta que cria um amor obsessivo por Venâncio, mas é veementemente rejeitada por ele inúmeras vezes. 

O livro se inicia com Lucy que, apesar de ser orgulhosa e desejada por todos os homens da cidade, acaba caindo de amores por Venâncio e fazendo tudo o que sabe e o que pode para seduzi-lo. Só que não nos é revelado nesse momento, ainda, que Venâncio, na realidade, é comprometido com Dalva. 

A partir daí, temos uma breve narrativa sobre Venâncio, um homem de olhar abismal e com mãos que carregam a culpa de um passado marcado por um crime cometido. Ele frequenta a casa de Manu, um prostíbulo local onde busca o alívio da carne diariamente e chama a atenção de Lucy desde a primeira vez em que passa por lá. 

Conforme Lucy, Venâncio e Dalva têm suas histórias desenvolvidas, a autora aguça a curiosidade do leitor que anseia pela compreensão do que levou cada um a ser e se comportar da maneira que é. É inevitável não questionar: como Lucy se tornou prostituta? De onde vem a culpa que Venâncio carrega? E quais seriam as medidas de Dalva após tudo o que ela sofreu pelas ações inesperadas dele?

Com isso, logo no capítulo 3, descobrimos a atrocidade cometida por Venâncio contra Dalva e contra o próprio filho, fruto de seu amor com ela. Inclusive, a cena em questão teve um peso tão forte para a autora, que em uma entrevista, ela afirma ter se distanciado da obra. 

Dito tudo isso, vamos nos ater a alguns pontos mais específicos da obra.

Alguns pontos da narrativa:

Com a história contada em terceira pessoa e com uso de uma prosa poética, talvez excessiva em alguns momentos, somos apresentados a uma ordem não linear da história. Portanto, não espere um começo, meio e fim oferecidos de forma simplória. A autora inicia a história trazendo fatos de um período presente e, aos poucos, introduz o passado de forma a preencher as lacunas latentes. Dessa maneira, conforme a narrativa avança para seu fim, temos em alguns momentos, capítulos que abarcam a vida de Lucy e capítulos que atém-se sobre Dalva e Venâncio, voltando-se para momentos chaves da relação de ambos, inclusive, a princípio, bastante promissora; mas que, infortunadamente, ganha um formato obscuro e desolador. Com isso, começam a surgir sentimentos de choque, incompreensão e dúvida no leitor, que tenta unir as peças do quebra-cabeça.

Sobre o passado e as características dos personagens: 

O ciúmes descontrolado de Venâncio e o seu comportamento violento podem ter alguma relação com o passado conturbado dele com seu pai?

Por volta do capítulo 15, são apresentadas características do núcleo familiar escasso de Venâncio. Seu pai, José, é descrito como um homem que dava ordens demais e que buscava briga em qualquer conversa. Na visão de Venâncio, por vezes, ele gostaria que o pai desaparecesse e tinha vergonha da sua brutalidade explícita. Por causa disso, Venâncio vai morar com outro familiar e só retorna anos depois. Além disso, Inês, sua mãe, também se muda a fim de morar com o filho após anos suportando os espinhos de José, homem de gênio infeliz. Apesar dessas informações, não há muitos outros detalhes aprofundados a respeito dele. 

Por outro lado, encontra-se um contraste quando analisamos a estrutura familiar de Dalva. Sua família é composta por muitos irmãos e pais amorosos, levando em conta, principalmente, sua mãe, dona Aurora. A princípio, o pai de Dalva, Antônio, é totalmente contra o relacionamento dela com Venâncio, mas após insistência e argumentação de Aurora, ele cede em prol da felicidade da filha. 

Existem capítulos dedicados a falar exclusivamente sobre a família de Dalva, como por exemplo, a forma como seus pais se conheceram, como eles eram enquanto jovens e como eram suas relações familiares. Talvez um motivo para essa abordagem da autora, esteja atrelada com a ideia de mostrar como o relacionamento de Aurora e Antônio foi construído e que apesar de estarem juntos há anos e terem muitos filhos, nem tudo foi edificado em cima de flores e que, por vezes, nem tudo é sobre o amor e suas manifestações. 

Aurora tem certo desenvolvimento dentro da narrativa e aparenta ser mais sensível e empática do que seu companheiro e, por isso, quando conhece Venâncio, de forma perspicaz e, quase que imediata, nota que seu lado obscuro está contido no ciúmes. 

Na visão de Venâncio, a respeito desse sentimento fulminante, ele não enxerga o problema nele ou em Dalva e sim nos outros homens, que veem todas qualidades que Venâncio enxerga nela e, que, portanto, iriam de alguma forma tirá-la dele. 

Apesar de Carla trazer muito embasamento para as relações de Dalva e Venâncio, Aurora e Antônio, por exemplo, ela explora Lucy de forma diferente. A obra se inicia com Lucy, mas o foco principal da trama não se torna sobre ela. No entanto, Lucy não deixa de ser uma personagem interessante. Ela é uma personagem marcada por traços fortes, sendo descrita como orgulhosa, decidida e, em determinados momentos, ganha ares de vilania. Quando Dalva enfrenta o luto, por exemplo, Lucy não mede esforços para provocá-la e torturá-la diante de sua dor. É claro que Lucy não tem um final totalmente feliz, mas de alguma forma, ela se redime diante seus erros e comportamentos. 

Na realidade, o final é um dos pontos que mais chama a atenção no livro. Diante de todos os acontecimentos, o senso comum não faz parte das escolhas finais de Dalva.  E, é aí que entram as reflexões e tensões que a obra causam nos leitores. 

Pode alguém perdoar um crime brutal cometido contra si e contra um terceiro?  

Pode o amor superar a dor da agressão física, sentimental e, até mesmo, espiritual? 

Pode alguém mudar e se arrepender de um crime de forma a restaurar o dano cometido? 

Cabe ressaltar que o livro não foca em desenvolver o crime cometido por Venâncio – e que não será mencionado aqui pois optou-se por realizar uma resenha sem os principais spoilers. O livro abarca como os sentimentos são inflamados pelos acontecimentos e a maneira como Lucy, Venâncio e Dalva lidam com eles.

É difícil, de fato, julgar as escolhas de cada personagem, mas é importante refletir a respeito. Assim como eles, somos constituídos por compostos orgânicos e inorgânicos que influenciam em nossas químicas cerebrais e que se comportam de forma brusca e pouco previsíveis. 

“Tudo é rio” é um romance que apresenta um pouco de tudo, mas que fala muito sobre particularidades próprias do ser humano. Com uma execução fluente, apesar de alguns aspectos exagerados, é uma leitura importante e que abre uma boa prosa com nosso interior e exterior.

Siga A Pista em todas as redes sociais (Instagram, Twitter e Facebook) e não perca nenhuma das nossas matérias sobre cinema, literatura, séries e música!

Torne-se um apoiador da Pista no apoia.se clicando aqui. Você também pode apoiar o nosso trabalho e o jornalismo cultural independente com qualquer valor via Pix para apistajornal@gmail.com.

Leia também:

Entrevista com a professora Ji Yun Kim, tradutora de “Atos Humanos” de Han Kang

Entrevista: Michelle Henriques — Leia Mulheres