
Pensar em um modelo de educação que consiga englobar o mundo multicultural no qual vivemos é uma tarefa árdua, pois muitos profissionais da própria área pedagógica ainda reconhecem esse multiculturalismo com dificuldade – se é que alguns o reconhecem. Esse é um dos pontos principais em que a escritora e professora americana bell hooks está focada em desvendar, de maneira analítica e minuciosa, em seu livro Ensinando a Transgredir. O volume é dedicado à investigação dos modelos de educação vigentes no meio pedagógico, e busca também abrir um caminho para a valorização do ensino que “transgrida” as fronteiras de gênero, raça e classe, questões raramente discutidas no contexto acadêmico.
Escrevendo desde sempre sobre essas questões com base em sua vivência e nas teorias da educação, hooks dedicou boa parte de sua obra para abrir questionamentos que anteriormente eram pouco explorados. Seus questionamentos costumam tocar em feridas antigas (mas ainda abertas), e que muitas pessoas não acreditam ter, até terem contato com alguma das publicações da autora. Grande admiradora de figuras importantes da luta racial, como Malcolm X, e dos estudos sobre educação, como Paulo Freire, ela passou enxergar uma possível associação entre esses temas, declarando que eles são complementares. De fato, essa é uma associação forte e importante para toda a sua escrita, e é nesse tocante em que Ensinando a Transgredir mais chama a atenção.

O livro todo é instigante e questionador, mas é em seu terceiro capítulo, intitulado “Abraçar a mudança: o ensino num mundo multicultural”, que hooks relata sua experiência como educadora em meio a um ambiente de docentes pouco envolvidos nas causas minoritárias. Logo no início, ela já expõe a dificuldade de transformar o contexto da sala de aula, deixando implícito que esse ambiente já fora previamente definido por um padrão específico. Obviamente, esse padrão contempla a imagem do que sempre foi posto em um pedestal e privilegiado: o homem branco. Ela relata o receio que muitos docentes têm de escapar desse padrão e permitir uma educação mais multicultural, pois isso pode causar desconforto e, consequentemente, uma situação de desordem. Por isso, muitos preferem manter-se no lugar comum.
Porém, um ponto bastante interessante apresentado por ela é a criação de espaços em que seja possível uma dinâmica entre os professores, para que eles se sintam mais confortáveis para expor seus medos e inseguranças em sala de aula e, em meio tempo, possam aprender a lidar com o “currículo multicultural” de maneira mais receptível. Até porque, muitos deles mal sabem, mas a formação de seu próprio currículo foi – e ainda é – silenciosamente enviesada. Muitos se negam a acreditar, mas como a própria hooks afirma: “nenhuma educação é politicamente neutra”.
A falta de representatividade, no entanto, leva ao cultivo não saudável de uma cultura de silenciamento. A partir disso, hooks relata que:
A experiência dos professores universitários que educam para a consciência crítica indica que muitos alunos, especialmente os de cor, não se sentem “seguros” de modo algum nesse ambiente aparentemente neutro. É a ausência de segurança que, muitas vezes, promove o silêncio prolongado ou a falta de envolvimento dos alunos.
(hooks, 2019, p. 56)
Ou seja, mesmo em uma classe multiculturalmente diversa e com abordagens que contemplam os alunos que carecem de representatividade, eles permanecem no “conforto” do silêncio, justamente devido a experiências prévias com esse desinteresse ou receio dos docentes de aceitar o “currículo multicultural”. Assim, criar uma classe em que todos se sintam confortáveis em participar e ser ouvidos é um grande desafio, até para os professores que acreditam em um ambiente acadêmico democrático, como a própria bell hooks.
Sua experiência com a educação inclusiva e multicultural mostrou-se muito positiva, embora alguns contratempos tenham aparecido inicialmente. Para ela, “um dos jeitos de construir a comunidade na sala de aula é reconhecer o valor de cada voz individual” (p. 58), então, com base nesse objetivo, ela passou a fazer com que os próprios alunos ouvissem a si mesmos. Esse passo é muito importante, pois a cultura do silenciamento é tão forte e presente, que mesmo os alunos cumprem o papel de julgar o valor das vozes de outros alunos, principalmente daqueles que se expressam de maneira não condizente com os valores disseminados pela academia. É importante também que o professor possa ceder esse espaço para as diferentes vozes e experiências presentes em sua sala de aula.
Os contratempos aconteceram quando alguns dos alunos sentiram-se incomodados a partir dessa abordagem multicultural. Por quebrar muitos padrões previamente estabelecidos – e com os quais os alunos estão mais familiarizados –, esse currículo diversificado acaba provocando insegurança e críticas por parte dos alunos, que acreditam na ocorrência de um desvio das questões realmente pertinentes. Por isso, nesse caso, o professor disposto a assumir esse desafio tem de se dedicar a estar sempre explicando a importância de uma visão mais ampliada e diversificada. Não somente, tem de estar preparado para a dificuldade de aceitação do método para os estudantes.
Por isso, bell hooks está certíssima quando diz que “pode haver, e geralmente há, uma certa dor envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras formas” (p. 61). É necessário compreender e respeitar essa dor, pois encarar um caminho novo e desconhecido pela frente sempre traz dúvidas e incertezas. Ademais, talvez seja ainda mais difícil para aqueles que se viam representados pelo antigo padrão de ensino, pois agora eles estão em um ambiente de vozes mistas que, vez ou outra, podem entrar em discordância com suas vozes. Para esses, é ideal que essa dor seja sentida, pois ela fará parte de um longo processo de aceitação do multiculturalismo como parte do currículo.
O cenário para o futuro em relação a essa educação multicultural e o espaço democrático é esperançoso. Cada vez mais professores estão dispostos a por em prática esse currículo, algo que bell hooks mostra com muito prazer e expectativas em sua vivência como professora negra em uma universidade dos Estados Unidos. Os alunos também cumprem um papel importante na disseminação desse currículo, pois seus interesses por uma educação mais abrangente e que estimule a autoconfiança cresce de maneira admirável.
Referência Bibliográfica
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a Educação como prática de liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo. Editora Martins Fontes (WMF), 2019.
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